Roberto Pla: Evangelho de Tomé – Logion 9
Fundamentado na Parábola do Semeador, Roberto Pla afirma que o maravilhoso nascimento e aparição deste fruto da semente lançada pelo semeador, depois de ter transitado pelo duplo batismo da água e do Espírito, vem descrito, segundo se comentou (Evangelho de Tomé – Logion 4), no relato joanico da entrevista de Jesus com Nicodemo (Nascer do Alto). é muito provável que muitos dos que leram esta linhas não creram que tal nascimento “do alto”, quer dizer, puramente espiritual, seja possível neles nem em ninguém. Com isto confirmariam a hipótese exposta na Parábola do Semeador de que a Palavra foi semeada em muitos que estavam “à beira do caminho”. Isto deve recordar-se em desencargo deles, pois como se achavam à margem não têm agora noção do caminho. Quanto à justificação nossa, teria que remeter-se à passagem do evangelho de João onde Jesus defende seu testemunho: “nós falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos”. É este testemunho o que deveria fazer pensar a muitos, especialmente a todos quanto imaginam crer nas palavras de Jesus mas não consideram possível tal nascimento pelo testemunhado.
Embora ocultado provavelmente no segredo misterioso, os pormenores do nascimento ou re-generação em Espírito deviam ser bem conhecidos pelos antigos mestres de Israel, e prova disso é o testemunho de seus escritos no Antigo Testamento. Todos estes escritos foram bem descobertos pelos eclesiásticos seguidores de Jesus Cristo e assinalados como antecipações plenas messiânicas e certamente, são antecipações se somente se atende à vertente “manifesta” de Jesus enquanto Cristo; mas é importante penetrar também na vertente “oculta”, aquela que Jesus Cristo reivindica para si ante os fariseus, como Senhor de Davi. Este último quer dizer que Cristo, o Messias, pode nascer e de fato nasce, no seio de todo homem que se constitui em “terra boa” e alcança a converter em fruto a semente nele semeada como grão de Vida. E com que outro motivo pode ser semeada nele tal semente? Esse fruto consiste em ser “Deus conosco”, e seu propósito é fazer-se manifesto como Filho “no” homem segundo um nascimento “do alto” em Espírito. Isto é ao menos o que deve ter sentido e entendido Isaías quando no chamado “Livro de Emanuel”, escreveu com firmeza expressiva seus versos messiânicos: “Porque um pequenino nos nasceu, um filho se nos deu” (Is 9,5).
Tudo isso o sabia muito bem Jesus o Cristo (o ungido), pois paralelamente à verdade histórica de seu nascimento “manifesto” em Belém, que foi tão bem estudado e difundido pela “eclesia”, se revelaram os evangelistas Mateus e Lucas, em sua função de “escribas”, mestres na arte de narrar os signos e sinais do nascimento “em espírito” de Jesus segundo a vertente “oculta”, para que assim, embora contado de maneira figurada, não careceria Jesus no evangelho da narração desde instante “pasmoso” que o nascimento de acima1. São muitos os sinais que no relato do nascimento de Jesus denotam que no pensamento do “escriba” vivia a ideia do nascimento “segundo a vertente oculta”. Disto deveremos nos ocupar mais adiante, mas agora o que nos urge é estudar os signos que identificam o relato da epifania, com a árvore enóquica da unção (v. Árvores do Paraíso, a qual somente poderia fazer-se graças ao “odor do conhecimento que Deus difunde” (2Cor 2,14). Será, com efeito, o “aroma do incenso e a mirra” o que encontrará sua figura real no conteúdo dos cofres que levam os magos e sábios do oriente.
Por sua participação na glória do Pai (Jo 16,14), o recém-nascido tem em seu dote a realeza espiritual segundo o dom da sabedoria (ouro), como a explica o Salmo na antecipação da auréola dourada com que o povo viu sempre a seus “santos”: “Pusestes em sua cabeça coroa de ouro fino” (Sl 21,4). Este é o conteúdo do primeiro cofre dos magos; os outros dois cofres encerram justamente os dois aromas que Enoque encontrou e testemunhou da árvore da unção: o incenso, que como “símbolo das oração dos santos” (Ap 5,18), revela a condição divina do nascido posto que nele se depositam orações, e a mirra, cuja fragrância é própria do Amado enquanto Cristo, segundo está dito com dizeres místicos no Cantar: “Seus lábios são lírios que destilam mirra fluida” (Cantar 5,13). A mirra , cujo aroma se exala de todas as árvores de Enoque, augura por isto todo o quadro da Paixão. É um dom, um perfume que o Filho do Homem recebe de seu Pai e dele participa, pois nele está sua fortaleza, mas o toma além disso enquanto Esposo místico que olha a sua Esposa, a alma, e para ela a destila, pois a alma é a destinatária firme e última dos termo da Paixão.
Segundo o evangelista Lucas, no formoso Benedictus entonado por Zacarias, o pai de João Batista, pleno de Espírito Santo, profetiza que pelas entranhas de misericórdia de nosso Deus, se dará a seu povo (a comunidade humana), conhecimento de salvação “que fará que nos visite uma Luz da altura”. A chegada de tão decisiva Luz havia sido profetizada também por Isaías, porque é uma Luz eterna, ingênita, própria de todos os tempos: “O povo que andava às escuras viu uma grande Luz”. Não é que a luz não venha ao mundo em cada homem, pois como disse Jesus enquanto Filho do homem: “Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo”, mas que o homem não crendo nela, nessa luz que há nele e em cada homem da “geração”, acarreta que essa luz não se manifeste e só haja a obscuridade. Por isso se diz no Benedictus que a misericórdia de “nosso” Deus consiste em que os caminhos do Senhor podem se endereçados aos conhecimento da “Luz da altura”, essa luz verdadeira que vem sempre com o nascido de “acima”.
Convém recordar que essa “Luz da altura” que nomeia Lucas não é outra que Anatole, a estrela “que traz a luz”, segundo a tradição mística do povo judeu. Segundo nos diz, Anatole é um dos títulos do Messias, e não são necessários grandes esforços de imaginação para identificar esta Anatole com aquela estrela “do céu” que segundo o relato da epifania, precedeu do Oriente aos misteriosos magos, “até que chegou e se pôs em cima do lugar onde estava o pequenino”.
O “pequenino” nada mais é, segundo a vertente “oculta” do nascimento do espírito (e sem que isso signifique interferência com a conhecida narração paralela do nascimento manifesto de Jesus), que o homem interior de luz enquanto fruto recente. Essa estrela Anatole, é a estrela que traz a luz e que se põe sobre o “pequenino” como uma coroa fulgurante, para que se cumpra o sentido messiânico do salmo: “Coroa de ouro fino pusestes em sua cabeça” (Salmo 21,3). Ela é a que revela aos discípulos, ou aos “magos” que a seguem desde longe em seu mais ou menos metafórico céu, o “lugar” certo onde o Filho do homem está.