Paul Evdokimov — Imago Dei — Imagem e Semelhnça de Deus
Desde o século XV, a idéia da imagem de Deus deixou de representar seu papel na filosofia. A consciência moral preserva ainda, vagamente, a reminiscência de uma voz longínqua, mas a vontade pura de Kant a desvincula do transcendente... Inúmeros dicionários de teologia falam hoje não da imagem, mas de sua perda; e mesmo assim, unicamente nos artigos a respeito do pecado original. É como se, em lugar do Reino que dirige a marcha da história, falássemos do paraíso perdido. A pregação perde sua virulência, neutralizada pelo pessimismo latente — a usura da história. Por outro lado, o personalismo experimenta grandes dificuldades neste problema crucial: de que modo coordenar a unidade da consciência, seu universalismo metafísico e a pluralidade dos centros pessoais que o exprimem de maneira idêntica. Ou a única realidade da consciência passa através dos homens, ou cada um tem sua própria consciência. Sem a instância que integre as duas, ao aceitarmos uma, destruímos a outra. Entretanto, todos os antropólogos concordam, prazenteiramente, com a mesma fórmula do homem: "um ser que aspira a sobrepujar-se", um ser que visa ao que é maior do que ele, propendendo para o "todo outro" de si mesmo; filho da riqueza e da pobreza: o "pobre" no homem tende para seu "rico". Seria preciso um são Paulo que falasse aos antropólogos para decifrar um novo altar ao deus desconhecido e para dar o nome a esta aspiração fundamental na qual o homem chega a exprimir o mais profundo de si mesmo: a imago Dei. O "querigma" antropológico dos Padres da Igreja proclama que a imagem não é uma idéia reguladora ou instrumental, mas o princípio constitutivo do ser humano.
A pureza do depósito apostólico da fé sempre foi a mais viva preocupação da Igreja. Âncora da salvação, transparência da palavra de Deus, o dogma é penetrado por uma inflexão fortemente soteriológica: questão de vida ou morte. Para exemplificar: uma única palavra omoousius — consubstancial — corrige magistralmente a curva das construções heréticas: somente a consubstancialidade do Filho ao Pai funda a divindade de Cristo, e nossa salvação a ela está suspensa pela nossa consubstancialidade à humanidade de Cristo. Santo Atanásio4 desenvolve a afirmação de santo Irineu5: "Deus torna-se homem, para que o homem se torne deus". Esta regra áurea da patrística oriental determina inteiramente sua antropologia. Segundo a definição de são João (1Jo 3,4-6), o pecado e a iniqüidade — anomia — são a transgressão do limite constitutivo, normativo do ser humano. O pecado é revelado pela lei; a função desta é traçar uma fronteira definida entre o que é kata taxin — conforme a ordem — e o que é desordem, caos, confusão profunda nas camadas ontológicas do ser humano. A patologia postula e requer o ato terapêutico capaz de descer até a raiz da perversão e operar a cura da natureza pela reconstituição de sua estrutura. A catharsis ética, purificação das paixões e dos desejos, completa-se na catharsis ontológica: a metanóia de toda a economia do ser humano. Trata-se, essencialmente, do restabelecimento da forma originária, a restauração da imagem arquetípica, da imago Dei.
Em sua genuinidade, esta imagem é o Cristo que os Padres chamam de o Arquétipo divino-humano. No momento da encarnação, Cristo, imagem do Deus invisível (Cl 1,15), não procura a forma angélica ou astral; e não somente adapta-se à forma humana, mas, segundo os Padres, Deus, ao criar o homem, fixava o olhar de seu pensamento no Cristo-protótipo. Cristo, "efígie do Pai", Cristo Ecce homo reúne em si a imagem de Deus e a imagem do homem. À frase "homem semelhante a Deus" corresponde sua justificação "Deus é semelhante ao homem". Deus encarna-se, assim, em seu ícone vivo: Deus não está fora de seu contexto ambiental, o homem é a face humana de Deus.
A imago é este terceiro termo de afinidade, de conformidade, de correspondência que mostra o homem no divino e Deus no humano, a ponto de podermos inverter o enunciado habitual. Em vez de dizer: a encarnação é condicionada pela queda, dizer: no começo, teoricamente, a criação do homem "à imagem" tinha em vista a encarnação — deificação e, portanto, "inspiração" (in-spirare); essencialmente teândrica.
Jung, pronunciando-se como psicólogo, sugere precisão muito importante no plano teológico. A imago, no que se refere ao homem, não se reduz à função de elo entre o modelo e sua reprodução, mas revela-se ao mesmo tempo como elemento atuante que prepara o homem para o advento da plenitude manifestada; exerce a função profética do precursor que espera e anuncia a encarnação. Esta função anuncia aquilo para o qual ela existe e a que ela aspira; em certo sentido, atrai o evento. No que se refere ao divino, a "imago Dei" manifesta o desejo de Deus de tornar-se homem. "O Eros divino, diz são Macário, fez Deus descer à terra", forçou-o a "deixar o cimo do silêncio".
Os anseios divino e humano culminam na direção do Cristo histórico em que Deus e o homem se contemplam como num espelho, e se reconhecem.
Entre os Padres da Igreja, não encontramos coerência perfeita a respeito da imagem. A riqueza de seu conteúdo permite vê-la nas diferentes faculdades de nosso espírito sem por isto esgotá-la. Santo Atanásio, ao se referir à função da imagem, insiste no caráter ontológico da participação no divino. Justamente pelo fato de o kat' eikona (à imagem) não ser reprodução moral; seu efeito traduz-se na iluminação do nous humano, conferindo-lhe a faculdade da teognosia. São Basílio realça a mesma luz do entedimento: "como num microcosmo, em ti verás a marca, o sinal da sabedoria divina" n. Não se trata, porém, de uma concepção intelectualista, porque a inteligência não é tomada em si mesma, mas de sua intencionalidade, aspiração a Deus. Reencontramos aqui, então, o conceito clássico da teologia oriental como via experimental do conhecimento-comunhão. A aspiração à comunhão é inata: "Pela própria natureza, possuímos o ardente desejo do belo... tudo aspira a Deus".
São Gregório de Nazianzo desenvolve outro aspecto desta afirmação: "Em minha condição de pó, estou preso à vida deste mundo, mas sendo também uma parcela divina, trago dentro de mim o desejo da vida futura" u. Portanto, "ser à imagem" significa o carismatismo inicial; a imagem comporta a indestrutível presença da graça inerente à natureza humana. "O jacto da invisível divindade" insuflada na alma predispõe-na à participação do Ser divino. O homem não é apenas ordenado moralmente, ou pautado no divino por decreto, mas pertence ao genos, à raça divina; a imagem predestina-o à teose.
Para são Gergório de Nissa, a criação "à imagem" eleva o homem ao cume de sua dignidade de ser amigo de Deus, vivendo situações da vida divina. Sua inteligência, sua sabedoria, sua palavra, seu amor existem à imagem das mesmas faculdades existentes em Deus. Mas a imagem penetra ainda mais profundamente na reprodução do mistério trinitário indizível, até aquele nível de profundidade onde o homem é enigma para si mesmo: "é mais fácil conhecer o céu do que a si próprio". Traduzindo o incognoscível no criador, o homem se descobre absconditus nesta mesma tradição. São Gregório detém-se na capacidade vertiginosa da livre determinação, na capacidade de fazer brotar de si mesmo toda escolha e toda decisão: autexousia, que quer exatamente dizer: determinar-se em sua própria constituição à imagem. A função axiológica de apreciação e de discernimento faz do homem o senhor que rege sua própria natureza e toda criatura, apresentando-o assim, em sua dignidade de verbo cósmico. Entre Deus e o homem deificado do Reino, é esta a diferença: "o divino é incriado, ao passo que o homem existe por criação". Em função da imago, o cristianismo se define: "imitação da natureza de Deus"; a Trindade invertida, refletida na multidão das hipóstases humanas unidas na mesma e única natureza humana.
O caráter transcendente desta dignidade inspira são Teófilo de Antioquia: "Mostra-me teu homem e eu te mostrarei meu Deus". Deus habita uma luz inacessível (lTm 6,16), a imago cobre o homem da mesma nuvem. Segundo são João Damasceno e, mais tarde, são Gregório Palamas, podemos definir o homem pela consciência de existir à imagem daquele que é, do Existente, e atingir assim, o indizível de seu mistério.
A profunda cultura da atenção espiritual que se coloca no centro dos esforços do ascetismo, faz desta atenção a verdadeira arte de ver todo ser humano como imagem de Deus. "Um monge perfeito, diz são Nilo do Sinai, depois de Deus, estimará todos os homens como o próprio Deus". Tal afirmação explica este paradoxo aparente: a tradição dos grandes ascetas impressiona por seu tom de alegria e por sua máxima valorização do homem. Com efeito, se o monaquismo é a maximização escatológica (com o último homem monge, a vida terrestre se interrompe e passa para o Reino), é também a maximização da tríplice dignidade humana, tríplice função da imago: profética, regia e sacerdotal.
A grande linhagem de são Macário do Egito, de santo Isaac, o Sírio, e ainda de outros lega-nos não uma doutrina, mas uma ciência experimental. Aqueles que, como ascetas praticantes, perscrutam a profundeza da alma humana nada têm a descobrir a respeito da amplitude da perversão (santo André de Creta a define: ato de criar por si mesmo o auto-ídolo), mas a mesma penetração nas profundezas dá-lhes outro conhecimento imediato: vêem a nova criatura inteiramente revestida da forma divina. "Entre Deus e o homem existe o maior parentesco" (são Macário). Assim sendo, neste laboratório antropológico do deserto, opera-se notável elaboração da vocação humana: como a economia infiel da parábola, o homem se serve sobejamente do tesouro do amor divino para "capitalizar o Bem" e "construir o Reino" (são Máximo). Um artista trabalha com a matéria deste mundo — um asceta gera-se, esculpe seu próprio rosto e tece todo seu ser com a luz divina.
A posição do homem no mundo é privilegiada, situa-se exatamente entre o espiritual dos anjos e o material da natureza; em sua constituição, contém os dois e foi o que atraiu a atenção de são Gregório Palamas. O que diferencia o homem dos anjos, é ele ser à imagem da encarnação; seu "espiritual" puro penetra toda a natureza através de suas energias "vivificantes". Um anjo é "luz recebida", puro reflexo, mensageiro e servo dos valores espirituais. Ao homem, imagem do Criador, é dado surdir os valores da matéria deste mundo, criar a santidade e ser-lhe a fonte. O homem não reflete, mas se torna luz, torna-se valor espiritual e por tal razão os anjos servem-no. O mandamento inicial de "cultivar" o Éden abre-se para as perspectivas grandiosas da "cultura". Em suas diferenciações anagógicas, ela excede a si mesma e leva ao culto, à liturgia cósmica, canto incessante de "toda alma que respira": cantarei ao meu Deus enquanto eu viver (Sl 104,33); canto "em" e "para" a plenitude do humano — prelúdio já aqui na terra da liturgia celeste. Como tão acertadamente diz são Gregório de Nissa, o homem é um arranjo musical, um hino maravilhosamente composto de força todo-poderosa. Acima da curva do pecado, a primeira destinação pesa no destino histórico do homem e define-o nos termos de são Basílio: "o homem é uma criatura que recebeu a ordem de tornar-se Deus".
Ao percorrer o imenso campo do pensamento patrístico, infinitamente rico e matizado, observamos que ele evita qualquer sistematização e preserva, assim, toda a sua extraordinária maleabilidade. Permite-nos, portanto, extrair algumas conclusões fundamentais. Antes de tudo, temos de afastar concepções substancialistas da imagem que não é depositada em nós como parte de nosso ser, mas a totalidade do ser humano é criada e esculpida "à imagem". A expressão primordial da imagem consiste na estrutura hierárquica do homem, com a vida espiritual no centro. É esta centralidade, esta primazia da vida do espírito que condiciona a aspiração inata ao espiritual, ao absoluto. "Trata-se do impulso dinâmico de todo o nosso ser em direção a seu arquétipo divino", diz Orígenes; "é a aspiração irresistível de nosso espírito a Deus", declara são Basílio; "é o eros humano que propende para o eros divino", ensina são Gregório Palamas. Em suma: é a sede inextinguível, a densidade do desejo de Deus, como tão admiravelmente exprime são Gregório Nazianzeno: "é para ti que vivo, é para ti que falo, é para ti que eu canto".
Resumindo, cada faculdade do espírito humano reflete a imagem, mas esta é essencialmente o todo humano centrado no espiritual e cuja peculiaridade consiste em se sobrelevar para lançar-se no oceano divino e nele encontrar a quietação de sua nostalgia. É a tensão do ícone para o seu original, da imagem para seu "arque". "Por meio da imagem, diz são Macário do Egito, a Verdade lança o homem em seu próprio encalço".
O homem é criado betsalmenu kidemoutenu à imagem e à semelhança. Para o espírito hebraico, sempre muito concreto, tselem, imagem possui sentido mais forte. A interdição de talhar imagens explica-se pela significação dinâmica da imagem: ela suscita a presença real daquele a quem representa. Demouth, similitude, semelhança, incita a considerar-se outro. A imagem é inteira, completa e não pode sofrer modificação nem alteração alguma. Podemos, porém, reduzi-la ao silêncio, abafá-la e torná-la ineficaz pela modificação das condições ontológicas.
É preciso mencionar ainda o termo hebraico tsemach, semente, germe. A criação, o dinamismo, o jacto da vida, a positividade do tempo bíblico é tsemach, germe que evolui, desenvolve-se, passa pela fecundação e transforma o tempo de desgaste e de envelhecimento, o tempo de gestação em tempo de nascimento. Os retornos do tempo cósmico, cíclico, tornam-se progressão, crescimento; é o pendor positivo para as realizações. Neste impulso e movimento progressivo, não existe recriação, mas tudo é dominado pelo germe, pelo que já era no princípio, pela primeira destinação, e os Padres sustentam fortemente que Cristo retoma o que fora desviado pela queda. O Reino é a expansão do germe paradisíaco detido em seu desenvolvimento pela patologia da queda que Cristo vem curar (a imagem da cura é a mais freqüente no Evangelho; ela é normativa: a ressurreição é a cura da morte).
A criação no sentido bíblico é como grão que produz cem por um e nunca falha: meu Pai trabalha sempre e eu também trabalho (Jo 5,17). É o alfa que se dirige para o ômega e já o contém, o que torna cada instante do tempo definidamente escatológico, abre-o para sua efetuação final e, assim sendo, julga-o. O Messias é chamado tsemach e a própria noção de messiah resulta do pleroma: a criação exige a encarnação e esta se realiza na parusia e no Reino. O mundo é criado com o tempo, significando que está "inacabado", "em germe", a fim de progredir e conduzir o sinergismo do agir divino e do agir humano até o dia do Senhor, quando o germe alcançará a maturação final. "O objetivo só seria atingido se houvesse no fim o que deveria teoricamente existir na origem: uma humanidade divina". Este pensamento de Bergson requer a inexistência de qualquer ruptura ontológica: eis que faço novas todas as coisas (Ap 21,5), faço a última, como a primeira. O axioma da revelação bíblica aponta a coincidência final do en archè, in principio, do projeto inicial com seu "télos", sua completação. Na origem, ao termo inicial os filhos do Altíssimo (SI 82,6) corresponde o termo final vós sois deuses (Jo 10,34). Da árvore da vida, passando pela eucaristia, dirigimo-nos "para a mesa sem véu" do Reino. Da perfeição inicial inconsciente, encaminhamo-nos para a perfeição consciente, à imagem do Pai celeste. A ontologia dos seres estruturados "à imagem", o fato de ser criado segundo a raça divina, determina a tarefa a cumprir: tornar-se efetivamente santo, perfeito, deus segundo a graça, participando das condições da vida divina: imortal e íntegro, "casto". A imagem, fundamento objetivo por sua própria estrutura dinâmica, atrai a semelhança subjetiva, pessoal. O germe — "ter sido criado à imagem" — conduz ao seu desabrochar: "existir à imagem".
Entre os Padres da Igreja encontramos diferença bem acentuada, que são João Damasceno sintetiza: "À semelhança significa: semelhança na virtude". A tradição é muito explícita e firme: após a queda, "a imagem" permanece a mesma, mas reduzida ao silêncio ontológico, ineficaz pela destruição de toda capacidade de "semelhança", tornou-se radicalmente inacessível às forças naturais do homem. São Gregório Palamas explica: "No nosso ser à imagem, o homem é superior aos anjos: mas na semelhança, é inferior, porque instável". "Após a queda, rejeitamos a semelhança, mas não perdemos o ser à imagem". Cristo restaura a força dos atos, restabelece a semelhança, o que liberta a imagem, e a irradiação desta torna-se perceptível nos santos e nas crianças. São Gregório de Nissa lega-nos seu querigma antropológico: um ser só é homem quando movido pelo Espírito Santo, quando é "imagem semelhante". A imagem é constitutiva e normativa, jamais pode ser perdida ou destruída. Em sua função de conformidade, de deiformidade, torna real a palavra: sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito (Mt 5,48). Quando Deus for tudo em todos (1Cor 15,28), os templos serão conformes à presença que os cumula e anima. A "filiação" bíblica afasta toda idéia da adoção jurídica; a cristologia muito bem demonstra que em Cristo os filhos são realmente semelhantes ao Pai. Se Deus é incomparável, o coração humano, que só Deus pede sondar, contém este algo único e comparável como tão acertadamente diz são Gregório de Nissa: algo que o configure a Deus, porque, para participar de Deus, é indispensável possuir em seu ser algo que corresponda ao participado (1Jo 4,16). A Deus é Amor corresponde o Amo, ergo sum do homem.