Peter Brown — Orígenes e a questão da virgindade
Chegando à meia-idade, Orígenes tendeu a apresentar a virgindade como um estado que afirmava a união de um espírito “imaculado” com seu arcabouço material bem temperado. Em decorrência dessa mudança de perspectiva, a virgindade não pôde mais ser encarada simplesmente como um perigoso estado de sexualidade em suspenso, imposto aos jovens travessos pelos mais velhos no período relativamente curto que ia da puberdade ao casamento. Tampouco se tratava de uma anomalia manifestada na suspensão do destino natural para o casamento, e pela qual passavam, no mundo pagão, algumas profetisas e sacerdotisas. A virgindade representava o estado original em que todos os corpos e almas se haviam unido. Era uma concretização física, através do corpo intocado, da pureza preexistente da alma. Nas palavras de um autor apreciado por Orígenes, o corpo continente era um selo de cera que trazia a “marca” exata da alma imaculada. Assim intimamente identificada com a alma primitiva, a carne intacta da pessoa virgem de ambos os sexos também se destacava como um frágil oásis de liberdade humana. A recusa a se casar refletia o direito do ser humano, detentor de uma alma preexistente profundamente livre, de não ceder sua liberdade às pressões impostas às pessoas pela sociedade.
Orígenes estava perfeitamente apto a extrair essa conclusão. O social e o físico se mesclavam inextricavelmente em seu pensamento. Por trás da definição imposta ao espírito pelo corpo havia a definição imposta à pessoa, através do corpo, pela sociedade. Orígenes sempre pensou no corpo como algo mais do que o corpo físico, visto isoladamente. O corpo era um “microclima”. Era um veículo por meio do qual o espírito se adaptava a seu ambiente material atual como um todo. Inúmeros filamentos sutis conduziam o espírito, através do corpo, ao envolvimento com outrem, e assim, ao envolvimento com a sociedade. Ao falar sobre os cônjuges sexualmente ativos, Orígenes não usou as palavras de Paulo sobre a necessidade (ou obrigação) atual para se referir às pressões exercidas sobre a alma pelos impulsos sexuais do corpo. Entendeu a obrigação num sentido muito mais amplo. Acreditou que Paulo se havia referido aos laços sociais que atavam os fiéis ao casamento e, através do casamento, ao arcabouço deste mundo — ao enorme e extenso corpo social em que os cristãos eram inextricavelmente enxertados através do matrimônio. Rejeitar a sexualidade, portanto, não significava, para Orígenes, simplesmente eliminar os impulsos sexuais. Significava a afirmação de uma liberdade fundamental tão intensa, um sentimento de identidade tão profundamente enraizado, a ponto de fazer com que se evaporassem as obrigações sociais e físicas normais que prendiam o cristão a seu sexo. A sociedade podia encarar a virgem cristã, o rapaz continente ou a jovem viúva cristã como pessoas definidas por sua natureza sexual física, e assim, como chefes de família e geradores de filhos em potencial. Orígenes não tinha tanta certeza: o espírito humano não precisava necessariamente aquiescer numa definição tão auto-limitadora quanto essa.
Não pertencer à sociedade casada era pertencer mais intensamente a outras. O mundo invisível era magnificamente sociável. Era uma “enorme cidade” apinhada de espíritos angelicais. O sentimento de uma sociedade alternativa invisível, de uma imensa comunhão de seres humanos e angelicais, foi central na noção do estado virginal em Orígenes. Os laços baseados na paternidade física, no amor físico e nos papéis sociais derivados da pessoa física se afiguravam singularmente evanescentes quando comparados à unidade vibrante de um universo que se esforçava por chegar ao abraço de Cristo. À luz de tamanha intimidade futura, os humildes laços físicos do casamento humano, baseados numa adaptação momentânea do espírito ao clima pesado da terra, pareciam singularmente sem substância. Chegaria um tempo em que todas as relações baseadas no parentesco físico haveriam de desaparecer. Com sua imensa identidade não mais definível dentro desses limites estreitos, nem sequer Abraão — assim “ousou” sugerir Orígenes, o filho do mártir Leônidas — continuaria a ser chamado “pai de Isaac”, mas seria referido por outro nome mais profundo: Não vos lembreis das coisas anteriores, nem considereis as coisas do passado. Eis que farei uma coisa nova.