Peter Brown — Orígenes e a questão da alma
O problema levantado por Orígenes foi simples: “Como foi que passou a haver uma multiplicidade tão grande e diversificada entre as criaturas?”
Era o velho problema platônico — como tinha a diversidade observada no mundo material emergido da unidade originária do mundo das Idéias? Sua resposta à pergunta, entretanto, foi magnificamente idiossincrática. Em sua opinião, cada criatura escolhera livremente ser diferente de seus semelhantes; e cada diferença refletia um grau exato de declínio de uma perfeição comum originária ou de progresso rumo a ela. Criados originalmente idênticos como espíritos “angelicais”, todos os espíritos haviam “decaído” ao escolher, por sua livre vontade, negligenciar, ainda que infimamente — e também, no caso dos demônios, rejeitar —, o calor vivificador da presença de Deus.
O que hoje chamamos “alma”, o eu subjetivo, foi meramente o resultado de um esfriamento sutil do ardor original do eu primevo e mais profundo: o “espírito”. Como assinalou Orígenes, a palavra psyché, “alma”, derivava de psychros, “frio”. Comparado ao espírito flamejante que se elevava num lampejo, sempre se esforçando por reentrar no fogo primevo de Deus, o eu consciente era uma coisa embotada, entorpecida pela fria ausência do amor. A estarrecedora diversidade do universo atual, dividido entre fileiras de anjos e demônios invisíveis, e marcado na terra por uma variedade aparentemente infinita de destinos humanos, era o produto final de incontáveis escolhas particulares pelas quais todos os espíritos haviam optado livremente por ser o que eram agora.
O aspecto mais evidente dessa concepção era um sentimento monótono de “divina insatisfação” com as limitações atuais da pessoa humana. Uma vasta impaciência perpassava o universo. Cada ser — angelical, humano ou demoníaco — se havia de algum modo afastado de Deus, através do pecado insidioso e fatal da presunção. Cada um dos poderosos espíritos tinha feito, e ainda poderia fazer, uma terrível opção por continuar contente com seu estado atual e por desprezar a oportunidade de se expor ao fogo ardente do amor divino. Para Orígenes, Cristo fora o único ser cujo eu originário mais profundo havia permanecido “não esfriado” pela inércia. Somente o poderoso espírito de Cristo permanecera inseparavelmente unido a Deus, tal como o alvo calor do ferro se fundia com as chamas da fornalha em que ele se apoiava. Todos os outros seres tinham de vivenciar um sentido implacável de tristeza e frustração: a definição primária, mais verdadeira e mais expansiva de seu eu se estendia inevitavelmente para além das condições estreitas de seu modo de vida presente. Uma sombra de pesar sempre recaía sobre o corpo. Quer esse “corpo” fosse o contorno etéreo de um anjo ou a carne sólida de um ser humano, o corpo era sempre um limite e uma fonte de frustração. Mas era também um desafio; era uma fronteira que pedia para ser transposta. As “tendas”, assinalou Orígenes, eram invariavelmente mencionadas de maneira favorável no Velho Testamento. Representavam os horizontes ilimitados de cada espírito criado, sempre prontas a ser desarmadas e novamente erigidas, indefinidamente. As “casas”, ao contrário, eram símbolos da terrível sociedade, “enraizadas, firmadas e definidas por limites fixos”. Até os seres mais resplandecentes eram afetados por essa tristeza: Orígenes acreditava que a imensa alma do sol se comprimia incessantemente contra seu disco radiante, e que seu espírito suspirava como havia suspirado S. Paulo: Quisera eu ser dissolvido e estar com Cristo: pois isso é muito melhor.