Peter Brown Origenes Aisthesis

Peter BrownOrígenes e a questão da sensação

Pensando assim, Orígenes se apropriou, de maneira caracteristicamente idiossincrática, de um aspecto singular do platonismo de sua época, com que talvez houvesse deparado inicialmente através dos discípulos de Valentim. A doutrina platônica das Idéias foi um ingrediente central da visão origeniana do ser humano. A noção de que toda a beleza e ordem do mundo visível eram um eco distante de uma harmonia invisível ainda mais majestosa obcecava os contemporâneos. Para Orígenes, podia-se pensar que tudo o que era percebido pelos sentidos existia com intensidade não obscurecida em Deus, a fonte de todos os seres. O mundo espiritual fervilhava de alegrias cujo deleite sensorial só era vedado aos fiéis pelo atual entorpecimento de seus espíritos. Os que conseguissem delegar seus corações enregelados voltariam mais uma vez a experimentar a impressão aguda e precisa de uma profusão de sensações espirituais. Os profetas e os evangelistas tinham “sentido” a alegria original da Sabedoria Divina. De um modo que escapava às experiências normais, haviam-na realmente “provado”, “cheirado” e “bebido”, saboreando o doce paladar da Sabedoria Divina com uma sensibilidade não embotada pela negligência prolongada.

O trabalho da vida de Orígenes, como exegeta e guia de almas, era fazer com que os “sentidos espirituais” de seus pupilos revivessem em sua intensidade original. Afastando-se da anestesia entorpecida da sensação física corriqueira, a alma das pessoas “espirituais” recuperaria os deleites aguçados de um outro mundo mais intensamente jubiloso. O espírito dos fiéis se colocaria totalmente exposto diante do Noivo, despojado de todas as alegrias sensuais, para receber na sensibilidade “nua” o toque requintado de Seus dardos.

Orígenes escreveu as Homílias sobre o Cântico dos Cânticos, por volta de 240, como um expoente peculiarmente pomposo do que se chamou, com suma propriedade, de platonismo “selvagem” de sua geração. Nesse platonismo, a sensualidade não podia ser simplesmente abandonada ou reprimida. Ao contrário, a agudeza da experiência sensual era restituída a sua intensidade primitiva: era reacendida, no coração dos místicos, em seu nível verdadeiro — o nível do espírito. Em contraste, o prazer físico era um deslocamento trivial e insípido do verdadeiro sentimento, um desvio da imensa capacidade de deleite do espírito para as sensações embrutecidas do corpo. O espírito precisava aprender a “arder” em seu eu mais profundo, a ansiar pela precisão indefinível do aroma divino, a esperar pela deliciosa particularidade do sabor de Cristo na boca, e a se preparar para o abraço final do Noivo. Isso significava, na verdade — para Orígenes e seus sucessores —, uma disciplina dos sentidos muito mais rigorosa, na medida em que o que estava em jogo já não era a simples continência, mas o frágil e hesitante desenvolvimento de um sentido espiritual de extraordinária agudeza. O prazer físico, a ingestão indevida de alimentos, o gozo indevido da visão e da audição, os prazeres físicos da união sexual no casamento, tudo isso se tornou tema de vigilância. As experiências sensoriais alimentavam uma contra-sensibilidade. Levavam a um embotamento da verdadeira capacidade de júbilo do espírito. Eram uma “almofada” que amortecia o impacto dos prazeres mais profundos e mais vividos que se depositariam como beijos sobre o espírito desnudo.

O que estava em jogo entre Celso, o pagão, e Orígenes, o cristão, ambos platônicos, era onde encontrar o sagrado no mundo visível, e, conseqüentemente, de que fonte derivar a autoridade que o sagrado poderia passar a exercer entre os homens. Como bom platônico, Celso havia considerado o universo material como um todo. Esse era um “corpo” refulgente, palpavelmente digno da poderosa alma-Criadora que o abraçava. O sol incandescente e os densos aglomerados da Via Láctea: esses eram “corpos” inflamados pelo toque das Idéias. O brilho sereno do Deus Único, delegado a ministros “angelicais”, mais conhecidos dos homens sob sua aparência tradicional de antigos deuses, filtrava-se ainda mais sob a lua, até tocar a terra opaca, banhando numa luz imperturbável os lugares santos imemoriais da adoração paga. As estátuas, templos e ritos ancestrais, esses eram os símbolos que ecoavam de maneira mais apropriada, na terra, a resplandecente santidade dos céus. Comparado a eles, o corpo humano era uma coisa demasiadamente frágil para trazer em si tanta majestade: não passava de um mendigo carente que se acercara da alma, pedindo com desagradável insistência uma pequena parcela de sua atenção. Celso ficara profundamente irado com o fato de os judeus, e depois os cristãos, afirmarem estar acima de todos os templos — acima até das próprias estrelas. Eles afirmavam desfrutar de uma comunhão direta com o Deus Único do universo. Celso, e depois Plotino, contemporâneo mais moço de Orígenes (ambos filósofos platônicos impregnados da mesma cultura que Orígenes), demonstraram uma profunda ira religiosa ante o fato de tamanha super-valorização de suas pessoas ter levado os cristãos a subverterem a hierarquia estabelecida do universo. Os meros seres humanos tinham que conhecer seu lugar, muito abaixo das estrelas; não deveriam afirmar-se capazes de descartar os deuses que os assistiam dos céus distantes. Os cristãos, dissera Celso, eram como sapos reunidos em torno de um charco, ou vermes congregados em algum canto asqueroso, dizendo: “Deus chegou mesmo a abandonar o mundo inteiro e os movimentos dos céus, e menosprezou a terra imensa para dar atenção exclusivamente a nós.” São como vermes que dizem; “Primeiro há Deus, e depois dEle somos a categoria seguinte … e todas as coisas existem para nosso benefício.”