Elaine Pagels — O Paulo Gnóstico
(Rom 1:1) Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para apóstolo, separado para o evangelho de Deus.
Paulo abre sua carta indicando sua dupla responsabilidade — de fato, sua dupla identidade — assim os exegetas valentinanos afirmam. Pois o apóstolo primeiro se identifica como “escravo de Jesus Cristo”, ou seja, um psíquico, disposto “como um escravo” em relação à revelação pneumática. Paulo se identifica psiquicamente uma segunda vez quando diz que ele é “chamado” (em contraste com os pneumáticos, os quais são “escolhidos”).
Paradoxalmente continua se identificando como “separado para o evangelho de Deus”. Exegetas valentinanianos correlacionam esta passagem com seu louvor por “aquele que me separou do ventre de minha mãe” (Gal 1:15), “apreendendo estas passagens”, diz Origenes, para provar que Paulo é um eleito pneumático.
Porque Paulo, o grande mestre pneumático, se identifica primeiro como um escravo psíquico? Teodoto, citando Filipenses 2:7-9, lembra como o Cristo pneumático “esvaziou-se a si mesmo” para tomar a “forma de um escravo” psíquico, Jesus, de modo a “se dispondo na semelhança humana” pudesse se tornar acessível aos psíquicos. Como “escravo”, Paulo imita o Cristo; ele, embora “escolhido”, identifica-se voluntariamente com os psíquicos que são “chamados”.
Rom 1:3-4 Acerca de seu Filho, que nasceu da descendência de Davi segundo a carne, Declarado Filho de Deus em poder, segundo o Espírito de santificação, pela ressurreição dos mortos, Jesus Cristo, nosso Senhor,
Paulo agora demonstra como prega o “evangelho de Deus” em duas formas diferentes: primeiro proclama àquele que “veio à existência da semente de Davi segundo a carne”, e segundo, aquele “designado filho de Deus … segundo o espírito”. O que Paulo quer dizer? Refere-se primeiro à linhagem humana do salvador, e segundo a sua relação com YHWH, o criador? Assim os psíquicos compreenderiam a mensagem de Paulo; mas os valentinianos rejeitam esta exegese “literal”.
O leitor iniciado aprende da tradição secreta que aqui de novo Paulo fala simbolicamente. “Davi” significa o demiurgo ele mesmo — uma apropriada metáfora, primeiro que ele domina suas criaturas como qualquer rei; segundo, porque, como demiurgo, formou e “aparentou” a humanidade “de acordo com a carne”. Paulo caracteriza em 1:3 a pregação psíquica do salvador “segundo a carne”, como o filho do demiurgo (“Davi”); mas em 1:4 a proclamação pneumática do Cristo “segundo o espírito” como “aquele designado filho de Deus” — do Pai.
O iniciado, treinado a ler a estrutura mais profunda do texto, então, poderia ver de 1:1 como Paulo identifica a si mesmo tanto com um psíquico e como um membro do eleito pneumático, e de 1:3-4 como demonstra dois diferentes modos de sua pregação. Assim prega o salvador de em cada uma de duas maneiras. Para o bem dos psíquicos (“aqueles à esquerda”) ele pregou o salvador “segundo a carne” (Rom 1:3) como humanamente nascido, sofrendo humanamente, “porque isto eles podem apreender, e deste modo temê-lo”. Mas também pregou o salvador “segundo o espírito” (1:4) como gerado do “espírito santo e uma virgem”, como aqueles que são pneumáticos (“à direita”) o reconhecem. Pois, Teodoto explica, o apóstolo sabe que “cada um conhece o Senhor de sua própria maneira; todos não o conhecem igualmente”.
Rom 1:5-7 Pelo qual recebemos a graça e o apostolado, para a obediência da fé entre todas as gentes pelo seu nome, Entre as quais sois também vós chamados para serdes de Jesus Cristo. A todos os que estais em Roma, amados de Deus, chamados santos: Graça e paz de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.
Paulo, tendo “recebido graça”, vê seu papel primário como apóstolo para “todas as nações”, para os gentios, que significam o eleito pneumático. Os valentinianos notam como Paulo contrasta sua própria missão para os gentios (para os pneumáticos) com a missão de Pedro para os judeus (ou seja, para os psíquicos cristãos, que olham Pedro como o fundador de sua igreja). Como apóstolo dos “gentios”, Paulo diz em 1:11 que espera compartilhar com eles seu “carisma pneumático”. No entanto admite em 1:14 que está obrigado tanto “aos gregos e aos bárbaros”, ou seja, ambos “aos sábios” pneumáticos e “aos tolos” psíquicos. Os valentinianos podem inferir que por esta razão o apóstolo dosa suas frases, abençoando primeiro os pneumáticos (aqueles “amados de Deus”) com “graça” de “Deus nosso Pai” e então os psíquicos (aqueles “chamados santos”) com “paz” do “Senhor”. (Esta passagem ilustra um princípio básico da exegese valentiniana: que Paulo usa o termo “Senhor” para designar YHWH, como “Deus” designa o “Pai”.)
Os exegetas valentinianos admiram a habilidade de Paulo enquanto entremeia estas frases tão sutilmente que leitores de mente simples nunca discernem o significado mais profundo. Eles afirmam que quando perguntam tais pessoas questões determinadas, tentando dirigi-las para o significado mais profundo, os psíquicos o rejeitam como “tolice”. Os valentinianos tomam esta resposta como evidência que (como afirma o apóstolo) “o psíquico não recebe as coisas do espírito de Deus; elas são tolices para ele; ele não pode reconhecê-las, porque elas são discernidas pneumaticamente, mas o pneumático discerne todas as coisas”.