o outro

Sendo o outro, “os outros”, o “próximo” outro eu, um alter ego, sua essência não pode senão ser idêntica à minha. Segue-se que tudo o que o cristianismo afirmou a respeito desse eu ou desse ego que eu sou vale para este outro eu que é o outro ego. O nascimento transcendental do ego concerne tanto ao outro quanto a mim mesmo. As consequências desta observação, que não deixaremos de considerar como uma trivialidade, são, todavia, imensas; alteram radicalmente tudo o que se pôde dizer ou pensar de modo implícito, antigamente [346] ou hoje, sobre a relação com o outro. Pois, se há uma pressuposição evidente e na qual se apoia inevitavelmente toda aproximação a essa relação, é justamente esta: o outro me aparece no mundo, é um ser situado nesse mundo, e minha relação com ele, consequentemente, é uma forma dessa relação com o mundo e não é possível senão nela. Ou ainda: o outro é um indivíduo empírico, isto é, mundano, portador de um conjunto de caracteres eles mesmos empíricos e mundanos. Estes caracteres, nós o sabemos, são de dois tipos, tendo uns que ver com o conteúdo deste mundo – caracteres sociais ou naturais, portanto –, e os outros com sua Verdade, isto é, com os modos concretos segundo os quais o mundo se fenomenaliza: espaço, tempo, causalidade, etc. Assim, tal indivíduo nasce em tal lugar, em tal época, de pais que pertencem a tal etnia, a tal meio social, ele próprio portador de tal determinação sexual, de tal propriedade ou de tal deficiência física ou intelectual, etc.

Mas, se, segundo seu nascimento transcendental na Vida absoluta, o ego, tanto o outro ego quanto o meu, é Filho desta Vida, é Filho de Deus, de modo que essa condição defina sua essência e consequentemente todas as suas determinações essenciais, então é o conjunto de seus caracteres empíricos e mundanos que são obstados de uma vez. Notadamente, tudo o que decorre de uma genealogia natural. É aqui que uma observação apresentada ao longo de nossas pesquisas precedentes se reveste de relevo singular. O que Cristo recusou para si mesmo, a saber, a ideia de uma genealogia natural precisamente, a ideia de que um homem é filho de um homem e de uma mulher, que ele tem pais “segundo a carne” – tudo isso se encontra afastado para o próprio homem. O homem que, por ser um vivente na Vida, por ser Filho desta, já não tem outro Pai além d’Aquele que está “no Céu”. Por isso todos os seus caracteres, decorrendo desta essência divina e invisível da vida, já não têm, portanto, nada que fazer com o que decorre do mundo e da verdade que lhe é própria. E isso vale doravante tanto para o outro quanto para mim. O outro não é nada além do que vemos dele no mundo e que cremos que [347] ele é. É a declaração radical e estupefaciente de Paulo aos Gálatas: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher” (3,28).


Ora, é este Idêntico em cada um – a autodoação da Vida fenomenológica absoluta em sua Ipseidade essencial – que determina de alto a baixo a teoria cristã da relação com o outro. Esta, assim, apresenta certo número de aspectos.

O primeiro: na relação com o outro, aquele com que temos algo que fazer não é nunca antes nem somente, a despeito de sua aparência mundana, um grego ou um judeu, um senhor ou um servo, um homem ou uma mulher: é um Filho. O que quer dizer: um Si transcendental gerado na autogeração da Vida absoluta e em sua Ipseidade essencial – Si que tem sua ipseidade desta e unicamente dela. É unicamente em tal Si e por ele que todo eu e todo ego são [351] possíveis. E não há grego nem judeu, senhor nem servo, homem nem mulher se todos esses são, cada um, um ego e um eu. Toda relação com um desses, com o “outro”, pressupõe assim uma relação com o Si transcendental sem o qual nenhum desses seria “outro”, isto é, outro ego. Mas toda relação com um Si transcendental pressupõe uma relação com o processo de autogeração da vida na Ipseidade de que este Si foi engendrado. Toda relação com o outro pressupõe Aquele de que ele é Filho, sem o qual, não sendo um Si, nem um eu, nem um ego, ele não seria o “outro”, o outro ego.

(Michel Henry MHSV)