Orígenes Pedidos

Orígenes — Tratado da Oração

XIX OS ÚLTIMOS PEDIDOS

“E NÃO NOS INDUZAS EM TENTAÇÃO, MAS LIVRA-NOS DO MALIGNO” (Mt 6,13; Lc ll,4)

As palavras: “E livra-nos do Maligno”, não se encontram em Lucas. Pressupondo que o Senhor não nos ordena pedir o impossível, parece-me bom indagar por que se nos ordena pedir que não sejamos induzidos em tentação, ao passo que a vida inteira do homem sobre a terra não é senão tentação. Enquanto permanecermos na terra, vestidos da carne em luta contra o Espírito, “a tendência da carne é inimiga de Deus e é tal que não pode se sujeitar à lei de Deus” (Rm 8,7), nós estamos em tentação.

Que toda a vida do homem sobre a terra seja uma tentação, aprendemo-lo de , que diz: “Não é, acaso, a vida dos homens sobre a terra uma tentação?” ( 7,1).

O mesmo é dito no Sl 17, no versículo: “Em ti eu serei libertado da tentação” (v. 30).

Não escreveu Paulo aos Coríntios que Deus não nos concede a graça de sermos isentos de tentação, mas de não sermos tentados acima das nossas forças: “Não vos assaltaram tentações, senão humanas; ora, Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima do vosso poder, mas com a tentação vos dará o modo de poder resistir a ela com êxito” (1 Cor 10,13). Quer tenhamos de lutar contra a carne, que milita contra o espírito, ou contra a alma de toda carne — sinônimo do princípio superior (tó hegemonikón), chamado coração, luta que sofre todo aquele que está submetido à tentação humana, quer travemos o combate de lutadores mais experimentados e perfeitos, que já não lutam “contra a carne e o sangue”, nem estão mais sob o ataque das tentações humanas, mas lutam “contra os principados, as potestades e os dominadores das trevas” (Ef 6,12), todos, em suma, estamos sujeitos à tentação.

Como pode ser que o Salvador nos ordene pedirmos para não cair em tentação, se Deus tenta, de algum modo, todos os homens?

“Recordai-vos (disse Judite não só aos anciãos do seu tempo, mas a todos os futuros leitores do seu livro) de como agiu Deus com Abraão, das provas a que submeteu Isaac, das que ocorreram a Jacó na Mesopotâmia da Síria, quando guardava os rebanhos de Labão, irmão de sua mãe. Como submeteu à prova todos estes para sondar seu coração. Assim o Senhor nos fere para nossa correção, porque Deus põe à prova aqueles que dele se aproximam” (Jt 8,26-27). E quando diz Davi: “Muitas são as tribulações do justo” (Sl 33,20), fala em geral de todos os justos. Assim também o Apóstolo nos Atos: “Por muitas tribulações devemos nós entrar no Reino de Deus” (At 14,22).

Muitos não entendem o sentido da petição: “Não nos induzas em tentação”. Se não a entendemos retamente, teríamos de concluir que os Apóstolos, quando oraram assim, não foram ouvidos. Eles, de fato, sofreram mil males no curso da sua vida, “em fadigas mais abundantemente, açoites, prisões, perigos de morte” (2 Cor 11,23).

Paulo recebeu da mão dos judeus quarenta açoites menos um, três vezes foi açoitado com varas, uma vez foi apedrejado, três vezes naufragou, um dia e uma noite esteve perdido no mar (cf. 2 Cor 11, 24-25). Foi um homem com tributações de toda espécie, com ansiedades, perseguições, abatimento (cf. 2 Cor 4, 8-9). Mas apesar de tudo, ele confessa: “Até o presente passamos fome, sede, nudez. Somos esbofeteados, andamos errantes. Cansamo-nos trabalhando com nossas mãos. Se nos insultam, bendizemos. Se nos perseguem, suportamos. Se nos difamam, respondemos com bondade” (1 Cor 4, 11-13). Se os Apóstolos não tiveram resposta a suas orações, que esperança pode ter uma pessoa muito mais insignificante do que eles?

Diz-se no Sl 25: “Põe-me à prova, ó Senhor, investiga-me, passa pelo crisol a minha consciência e o meu coração” (v. 2). Talvez haja alguém que, sem examinar detidamente o conteúdo do preceito do Salvador, possa supor razoavelmente que este versículo do salmo está em contradição com o que nosso Senhor ensinou sobre a oração. Mas, quem jamais supôs que estaria livre das tentações, levando em conta somente os que ele conheceu? Quando será o tempo em que não sendo preciso lutar, não tenhamos receio de pecar?
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Alguém é pobre? Tenha cuidado para “não se dar ao roubo e injuriar o nome do Senhor” (Pr 30,9). É rico? Não se ensoberbeça porque pode enganar-se e chegar a dizer: “Quem me vê?” (id.).Na verdade, nem sequer Paulo, “rico em toda palavra e em todo conhecimento” (1 Cor 1,5), esteve isento do perigo de pecar e de se orgulhar. Foi-lhe dado um anjo de Satanás que o esbofeteasse para não se orgulhar (cf. 2 Cor 12,7). E mesmo que alguém tivesse a consciência tranquila e acreditas-se fugir ao mal, leia aquilo que está escrito no segundo livro das Crônicas sobre Ezequias, de quem se diz que caiu pela exaltação do seu coração (cf. 2 CR 32, 25-26).

Por não termos falado mais da pobreza, talvez alguém despreze as tentações do pobre, como se ele não as tivesse. Saibam que o Tentador arma ciladas “para abater o pobre e o indigente” (Sl 36,14), sobretudo porque, segundo Salomão, “o pobre não suporta ameaça” (Pr 13,8).

Para que citar casos numerosos de quantos vão ao lugar de castigo do rico do Evangelho (cf. Lc 16,22-24), por não haver administrado dignamente as riquezas adquiridas? E quantos outros perderam a esperança do céu (cf. Cl 1,5) por suportar uma pobreza indigna e viverem de maneira bem servil e libertina, inconveniente aos santos? Mas também aqueles que vivem num estado intermediário entre a pobreza e a riqueza não são de todo imunes ao pecado, vivendo entre os extremos da posse e da carência.

Mas, talvez, quem é fisicamente são e robusto poderia crer que está livre da tentação, em razão do seu estado de saúde e por sua prosperidade. Mas o pecado que consiste na violação do “templo de Deus” (1 Cor 3,17), a quem pertence, senão a gente sã e de sadia constituição? Ninguém ousará, a esse propósito, demorar-se em explicações, porque é evidente a todos. Por acaso, livram-se os enfermos de solicitações para “violar o templo de Deus”, uma vez que passam o tempo na ociosidade e, portanto, acolhem facilmente pensamentos impuros? Para que dizer quantas coisas, além dessas, os perturbarão, se não acho que deve ser guardado o coração, com o maior cuidado? Há muitos que, debaixo do peso do sofrimento, e não sabendo como enfrentar de bom grado as doenças, prejudicam mais à alma do que ao corpo, quando está enfermo.

Outros muitos, para evitar a desonra, caíram na humilhação eterna, porque se envergonharam de levar com brio o nome de Cristo.

Pensará, talvez, alguém que não terá tentações quando o glorificarem os homens. Mas, como lhe soa dura a sentença: “Já receberam a sua recompensa”? (Mt 6, 2). Ela foi pronunciada justamente sobre aqueles que se comprazem com a glória vinda das multidões, como se fosse um bem! Podemos nos livrar dessa censura: “Como podeis crer, vós que aceitais a glória uns dos outros, e não buscais a glória que vem de Deus?” (Jo 5,44).

Será necessário que eu enumere os pecados de orgulho de alguns que passavam por nobres, ou de outros de baixa categoria que por sua ignorância caíram no servilismo de adulação em relação aos considerados superiores? Tal servidão distancia de Deus aqueles que não possuem uma sincera amizade, e simulam aquela que é a mais bela virtude humana, o amor.

A vida inteira do homem sobre a terra é, como foi dito, tentação.

O escopo, portanto, do nosso pedido relativo à tentação, não é tanto o ser isento da tentação — coisa impossível enquanto estamos na terra — mas de não sucumbir, quando tentados. Quem sucumbe à tentação, a meu ver, entra nela porque se deixa envolver nas suas redes. Nessas redes entrou o Salvador por causa daqueles que nelas estavam embaraçados. E “olhando através das grades”, segundo a expressão do Cântico dos Cânticos, responde àqueles que estão presos e entraram em tentação, e diz a eles como à sua Esposa: “Levanta-te e vem, amiga minha, minha bela, minha pomba” (Ct 2,9-10). Para esclarecer a afirmação de que não existe para os homens um tempo sem tentação, acrescento: Não está livre de tentação nem sequer aquele que noite e dia “se compraz na lei do Senhor” (Sl 1,2), e se esforça por praticar a palavra de Deus que diz: “A boca do justo meditará a sabedoria” (Pr 10,31). Nem este é imune à tentação.

Não é também necessário dizer quantos no estudo da Escritura Divina interpretaram falsamente o que é anunciado na Lei e nos Profetas e se abandonaram a doutrinas tolas e ridículas. E quantos outros, que deveriam se censurar por sua negligência nas leituras bíblicas, caíram nos mesmos erros.

O mesmo aconteceu a muitos no estudo dos escritos apostólicos e evangélicos, os quais por sua própria conta inventaram outro Pai e outro Filho, diversos daqueles que os Santos pregaram e são conhecidos na verdade.

De fato, quem não tem o conhecimento verdadeiro de Deus e do seu Cristo, separa-se do verdadeiro Deus e do seu único Filho. Tal pessoa, cuja insânia a levou a fantasiar, pretendendo tratar-se do Pai e do Filho, na realidade não os adora, porque !’ eles não são como pensa. Não compreendeu a tentação escondida na leitura dos escritos sacros, e não estava armada para o combate que aí a ameaça.
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A tentação permitida por Deus

Portanto, devemos orar, não para não ser tentados — coisa impossível — mas para que não sejamos enredados pela tentação, como acontece aos que são por ela aprisionados e vencidos.

Vemos que fora da oração do Senhor está escrito: “Orai para não cair em tentação” (Mt 26,41; Lc 22,40). Isto se pode entender pelo que já dissemos.

Na oração pedimos a Deus Pai: “Não nos induzas em tentação” (Mt 6,13; Lc 11,4). Por isso justamente, podemos ver e entender que Deus deixe cair em tentação alguém que não pede nem foi escutado.

Deus não faz cair a ninguém na tentação, como se o entregasse à derrota, por absurdo. Quem cai, já foi anteriormente vencido.

A mesma dificuldade ocorre com esta frase, interpretada à vontade: “Pedi para não cair em tentação” (Lc 22,40). Porque, se cair em tentação é um mal que pedimos não nos sobrevenha, como não deve ser absurdo pensar que Deus, sendo bom, de quem não podem brotar “maus frutos” (Mt 7,18), arme ciladas a quem quer que seja?

Vem a propósito acrescentar o que Paulo diz em sua Carta aos Romanos: “Jactando-se de sábios, tornaram-se estúpidos, tendo trocado a glória de Deus incorruptível por simulacros feitos à imagem do homem corruptível, de pássaros, de quadrúpedes, de répteis. Por isso foram abandonados por Deus nos desejos do seu coração, à impureza e desonraram seus corpos” (Rm 1,22-24).

Em seguida, ajunta: “Por isso os abandonou Deus a paixões infamantes, pois suas mulheres inverteram suas relações naturais por outras contra a natureza; igualmente, os homens, abandonando o uso natural da mulher, se abrasaram em desejos uns com os outros” , etc. E, afinal, acrescenta: “Como não tiveram por bem guardar o verdadeiro conhecimento de Deus abandonou-os Deus à sua mente réproba, para que fizessem o que não convém.” (id. 26-28).

Tudo isto devem ter em conta os que falam de dois deuses e dão por certo que um é bom, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e o outro é o deus da Lei.

Cabe agora perguntar-lhes se o Deus bom induz em tentação aquele cuja oração não é escutada, e se o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo abandona à “impureza nos desejos do seu coração aqueles que antes pecaram de outro modo, para que sejam desonrados os seus corpos”. Ou se, emancipados, segundo dizem, do pensamento do juízo e da punição, os abandona a “paixões infamantes, à sua mente réproba, para que fizessem o que não convém”, como se “nos desejos de seu coração” se encontrassem sozinhos e sem Deus, e “cedam a paixões infamantes” porque desligados dele. Não haveriam eles por si mesmos caído em “mentes réprobas”, independente do fato de Deus tê-los deixado de lado?
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Estas reflexões, como eu bem compreendo, produzem forte impressão em certas pessoas. E isto acontece porque elas criaram um Deus diverso do Criador do céu e da terra. Porque encontram na Lei e nos Profetas muitas expressões que, em sua opinião, estão em contradição com o Deus que não poderia ser bom, se dele vieram tais palavras. Pelas dúvidas suscitadas pelas palavras: “Não nos induzas em tentação”, citei vários trechos do Apóstolo, para ver se aí se encontram soluções convenientes às suas objeções. É minha convicção que Deus sustenta toda alma racional em vista da vida eterna. Toda alma tem sempre o livre arbítrio e é responsável, se ela se empenha no caminho da perfeição em alcançar as alturas da virtude, ou, pelo contrário, desce pela negligência, de mal a pior, aos abismos da maldade. A rapidez e facilidade com que alguns são perdoados os impedem de ponderar a gravidade do mal em que caíram, por facilidade do remédio. Daí acontece que venham a recair gravemente, depois de se ter levantado. Em tais casos, Deus, com razão, finge não ver o mal que vai se agravando, e parece despreocupar-se com ele, até chegar a ser incurável. Com isto quer Deus deixá-los até que se enfastiem de ser tanto tempo vítimas do mal. Fartos já do pecado que desejam, reconheçam o mal que fizeram a si mesmos. Então, odiarão o que antes amavam. E como com duradouro vigor experimentam a cura, podem agora se beneficiar da saúde recuperada da alma. Exemplo disto: “O gentio misturado no meio dos filhos de Israel, teve ardente desejo de alimento, de modo que os filhos de Israel começaram a chorar e a dizer: Quem nos dará a comer carne? Como nos recordamos do pescado que comíamos no Egito! E dos pepinos, melões, das verduras, das cebolas e dos alhos. Em lugar disto, agora temos a alma ressecada. Não temos nada. Nossos olhos não enxergam senão o maná!” (Nm 11,4-6).

E um pouco mais adiante: “Moisés viu chorar o povo, cada um em sua família, à porta da sua tenda” (Nm 11,10). E de novo o Senhor disse a Moisés: “Dirás ao povo: Santifiquem-se para amanhã, e comereis carne, porque vos lamentastes aos ouvidos do Senhor, dizendo: Quem nos dará carne a comer? Como estávamos bem no Egito! Ora, pois, o Senhor vos dará carne a comer. Não comereis só um dia nem dois, nem cinco, nem vinte dias, mas por todo o mês até que a comida vos saia pelo nariz e vos enjoeis, porque não acreditastes no Senhor, que está no meio de vós, e chorastes diante dele, dizendo: Por que saímos do Egito?” (Nm 11,18-20).

Vejamos se esta história nos ajuda a resolver as contradições entre as palavras: “Não nos induzas em tentação” e as palavras do Apóstolo.

“O gentio misturado aos filhos de Israel, teve ardente desejo de alimento, de modo que os filhos de Israel começaram a chorar” (Nm 11,4).

É bem claro que, enquanto não possuíam o que queriam, não podiam experimentar nenhum desgosto nem ficar livres da doença. Mas Deus, na sua benignidade e bondade, ao dar-lhes o que desejavam, queria, no entanto, concedê-lo de tal maneira que não deixasse neles o apetite desordenado. Por isso lhes disse que comeriam carne não só num dia, já que assim a paixão continuaria em sua alma, inflamada e acesa por ela, se recebessem carne somente por pouco tempo. Nem só por dois dias atendeu a seu desejo. Deus quis que comessem até sentir náusea. Há um julgamento no que se assemelha a uma mercê.

Assim pois, mais do que prometer-lhes a concessão, parece, ao contrário, ameaçá-los, dizendo: Vais comer carne não por cinco dias ou o dobro disto, ou ainda vinte, mas por todo um mês, até a carne vos sair pelas narinas com repugnância. O que supunhas bom, é torpe e vergonhoso. Proponho-me a fazer-vos livres, quando já não cobiçardes mais. Se realmente vos libertais deste modo, purificados de vossos apetites, lembrados de quanto tivestes de sofrer para o conseguir, não voltareis a cair nesta falta.

Mas, se passado muito tempo, vos esquecerdes do muito que a vossa cobiça vos fez sofrer; se não fizerdes caso de aceitar a Palavra que vos livra perfeitamente de toda paixão, então caireis no mal. Suspirando mais uma vez por vossos caprichos no futuro, voltareis a cair de novo na mesma paixão. Mas se odiais o que agora desejais com ânsia, então vos convertereis para as coisas nobres e para o celestial alimento, que é desprezado pelos que se nutrem de baixezas.

Isto é o que sofreram aqueles que “tendo trocado a glória de Deus incorruptível por simulacros feitos à imagem do homem corruptível, de pássaros, de quadrúpedes, de répteis. Por isso foram abandonados”, por haver abandonado a Deus, “nos desejos do seu coração, à impureza e desonraram seus corpos” (Rm 1,23-24).

Deram a corpos sem alma e sensibilidade, diminuindo-o, o nome daquele que concede a todos os seres sensíveis e racionais não só os sentidos, mas também a razão, e a alguns até concede sentir e entender com perfeição e virtude. E com razão, por haverem abandonado a Deus e serem abandonados por ele, caem em “paixões infamantes” e recebem “o pagamento merecido por seu desvario” (Rm 1,26-27), que os induziu a amores degradantes. Recebem, assim, a pena devida a seu erro, sendo entregues a “paixões infamantes”, em vez de serem purificados com o fogo espiritual e pagam no cárcere toda a sua dívida, até o “último ceitil” (Mt 5, 25-26). Ao se entregarem a “paixões infamantes”, umas de abusos naturais, outras contra a natureza, eles se mancham e degradam carnalmente, como se não tivessem alma nem entendimento e fossem somente carne.

No fogo e na prisão, não recebem então castigo da aberração, mas, ao contrário, um beneficio: são libertados, com punições salutares, da impudicícia e do sangue, dos quais estavam inquinados e infectados, sem condições de pensar no modo de se salvar da perdição.

“E Deus, com efeito, lavará a impureza dos filhos e filhas de Sião, e purificará as manchas de sangue com um sopro de justiça e com um sopro de fogo” (Is 4,4). “De fato, ele avança com o fogo do fundidor e com o detergente dos lavandeiros” (Ml 3, 2).

Lava e purifica quantos precisam, com esse remédio, porque ¦”‘ l não quiseram conhecer a Deus de maneira conveniente. Abandonando-se voluntariamente a essas provações salutares, eles odiaram a sua “mente réproba” (Rm 1,28). Deus não quer que se aceite o bem por necessidade, mas com plena liberdade. Talvez haja alguns que por longo costume do mal, tenham muita dificuldade em reconhecer a própria torpeza, e em detestá-la, considerando-a, talvez, como falsa aparência de bem.

Poder-se-ia pensar que foi por isso que Deus endureceu o coração do Faraó, para que pudesse dizer aquilo que declarou depois de ter o coração endurecido: “Justo é o Senhor; eu e o meu povo somos ímpios” (Ex 9,27).

Sem embargo, necessitou de maior endurecimento, e demais pragas para não acontecer que, cessando logo o endurecimento do coração, deixasse de considerá-lo um mal e merecesse de novo ser endurecido.

Portanto, “não é injusto armar redes para os passarinhos”, como se diz nos Provérbios (1,17), porque “Deus os leva ao laço”, segundo diz o Salmo: “Prendeste-nos na rede” (65,11). Ora, se até o mais insignificante dos pássaros, o pardal, não cai na rede “sem a vontade do Pai” (Mt 10,29), (cai na rede quem usa mal as asas, que lhe foram dadas para elevar-se), pecamos em nossa oração nada fazer que, segundo o reto juízo de Deus, nos mereça sermos induzidos em tentação. É induzido em tentação aquele que “foi abandonado por Deus nos desejos do seu coração” à impureza, isto é, cada um que “se abandona às paixões infamantes”, e cada um que é abandonado “à sua mente réproba”, faz coisas inconvenientes, porque não deu provas de trazer Deus em si (Rm 1,24.26.28).
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Utilidade da tentação

Esta é a utilidade da tentação: ninguém conhece, nem a própria alma, o que recebeu. Só Deus o sabe. É pelas tentações que se manifesta, e da maneira como podemos conhecer, como somos.

Por isso, podemos reconhecer com boa vontade até as próprias faltas, e quanto ao bem que a tentação nos faz ver, dar graças.

As palavras do Senhor no tentações servem para manifestar o que somos, dando a perceber os segredos do coração. Assim fala o Senhor a : “Pensas que te provei por alguma outra razão senão a de pôr em manifesto a tua retidão?” ( 40,8). E no Deuteronômio: “Ele te humilhou, te fez sentir fome, te deu a comer o maná … te conduziu através deste deserto grande e terrível entre serpentes e escorpiões, lugar de sede e sem água… para humilhar-te, provar-te e conhecer o que havia em teu coração” (Dt 8, 3.15.2).

18 Se queremos recordar a História da Bíblia, veremos que o fácil engano e o insensato raciocínio não aparecem pela primeira vez quando Eva escutou a serpente, e desobedeceu a Deus.

Já era assim antes da prova. Por isso, se aproximou a serpente, que por seu raciocínio sutil conhecera a fraqueza de Eva. (Gn 3,1.6). Nem no caso de Caim começou a iniquidade quando ele matou o irmão (Gn 4,8).

Antes disso, Deus, que conhece os corações, “não olhava propício a Caim e à sua oblação” (Gn 4,5). Mas a sua malícia se tornou manifesta quando matou Abel.

Se Noé não se tivesse embriagado bebendo do vinho que tinha cultivado, ficando nu, não se teriam posto em evidência nem a » impudência e a impiedade de Caim para com seu pai, nem a reverência e o respeito dos seus irmãos (cf. Gn 9, 20-23). As ciladas de Esaú contra Jacó se tornaram conhecidas por ocasião da bênção, em que foi posto de lado Esaú. Mas a imoralidade e impiedade dele já tinham “raízes” em sua alma (cf. Gn 27,41; Dt 29,18).

Não teríamos conhecido a esplêndida castidade de José, forte para não se deixar seduzir por qualquer mau desejo, se a sua senhora não se tivesse enamorado dele (cf. Gn 39,7).

Nos tempos, portanto, intermédios, em que as tentações sossegam, preparemo-nos a tudo que possa acontecer. Se algo, então, sobrevém, não nos acusarão de despreparados. Ao contrário, crer-se-á que estamos dispostos, à medida das circunstâncias.

Aconteça o que acontecer, não seremos tomados de improviso, mas, sim, disciplinados e com esmero.

Quando tivermos feito tudo que estiver em nosso alcance, Deus suprirá o que nos falta por causa da fraqueza humana. “Sabemos que em todas as coisas intervém Deus para o bem dos que o amam, daqueles que foram chamados segundo o seu desígnio” (Rm 8,28). Ele não se pode enganar.