Isha [PNSR]

Paul Nothomb — SEGUNDO RELATO [PNSR]

ISHA (Alguma)

Bem entendido, teoricamente, se se tomam estes relatos por descrições, resenhas «realistas», se se comete, em lendo-os, o erro dos pintores religiosos, que quiseram reproduzir ou imaginar as cenas «como se aí se estivesse», se poderia me objetar que o Homem que se exprime aqui no discurso direto não está ao corrente da narração que precede seu propósito, e não sabe que ela empregou antes dele no texto a palavra ‘(SH) H, e que esta coincidência prova simplesmente que significa nos dois casos «mulher» como na linguagem comum, e como o afirma a tradição. Mas então, se «essa-aí» já tem um nome, porque quer nomeá-la? Porque o relato nos conta esta denominação, que não tinha razão de ser, após aquela dos animais que tinha muita razão de ser? Senão para nos fazer compreender que aí há um desvio de sentido, uma perversão da linguagem, e um falso raciocínio, assimilando os animais e o Homem, da parte do Homem masculino.

De fato estes relatos são ficções grandiosas, não líricas mas pedagógicas, que ensaiam por uma sucessão de cenas e de discursos entre seus personagens, os quais unicamente «verdadeiros» mesmo quando são representados alegoricamente como a «serpente», em nos sugerir pelos ecos que despertam em nós, a Realidade da origem, do Éden, que nos é inacessível de maneira «realista» em nossa linguagem, a linguagem do Exílio, da «condição humana» que justamente o Homem (masculino experimenta aqui desde antes da «Queda» pretendendo nomear seu «alter ego» como se se tratasse de uma espécie animal… E é evidente que os autores destes relatos (que se pode crer «inspirados») redigiram tanto os discursos quanto a narração, que fazem parte de um mesmo texto tornado eventualmente mais coerente ainda pelo «compilador final», e onde todas as palavras têm seu lugar, umas em relação às outras. Logo não é por acidente, por coincidência, nem por empréstimo à linguagem comum, mas por empréstimo ao texto que a palavra ‘(SH) H é aqui repetida pelo Homem depois de ter sido empregada, teoricamente a sua revelia, na narração. E afirmo que em a repetindo desvia-se o sentido da pior maneira, pois poderia por uma simples mudança de acento fazer uma variante feminina de ‘(SH) («fogo») pela transformação do sufixo pessoal de ‘(SH) H (pronunciado «isha») em terminação feminina típica. O que teria dado então um pequeno nome afetuoso, um qualificativo como aquele que a concederá mais tarde, depois da Queda, a chamando HWH (Eva), quer dizer «vivente». Um pequeno nome de circunstância, lembrando o fogo de seu encontro e que teria significado aproximadamente «ardente» ou «chama». Mas não. O Homem masculino descarta expressamente esta conotação íntima, singular. Não é um qualificativo, um pequeno nome nem mesmo um prenome que lhe diz, não que ele a chamará, nem mesmo que ela será chamada mas que se a chamará, literalmente que «a essa-aí será chamado» é um nome tão mais geral posto que ele o faz derivar — confirmando por aí que ele inventa — de um nome masculino designando não importa qual indivíduo macho do reino animal, nela aditando uma terminação feminina. Aqui não posso portanto traduzir seu ‘(SH) H (pronunciado «isha») senão por «alguma». Mesmo se se tornou em seguida a palavra «mulher». Na origem em todo caso, segundo o texto, a palavra não designa a fêmea de um homem. Ainda menos do Homem. O hebreu é formal sobre este ponto capital. Com efeito ele não diz como Segond «se a chamará mulher porque ela foi tirada do homem». Mas:

KY M’Y (SH) LQHH Z’T, quer dizer:

KY = porque

M’Y (SH) — precedido da preposição M (fora de, proveniente de) descobrimos a palavra ‘Y (SH) (pronunciada «ish») que se encontrará em Gen 7,2 para designar o macho de espécies animais embarcadas por Noé na arca. Estas espécies já existiam no Éden onde o Homem (e não somente o Homem masculino) vem justamente, segundo nosso relato, de lhes dar «nomes» (Gen 2,20). Logo pode-se supor que conhecia esta palavra, que os redatores do texto puderam de toda maneira tomar emprestado à linguagem comum. Mas decorre também muito claramente do texto que a forma feminina desta palavra, considera-se que o Homem masculino não a ter tomado emprestado em nenhuma parte, posto que a explica por um raciocínio de natureza etimológica. Ele a inventou mas como para os nomes dados aos animais, de todas as partes, ela a fabricou a partir da palavra designando não importa qual indivíduo macho, ao qual Segond e toda tradição compreendem que ele se identifica. Mas segundo o texto, é o Homem (haadam) quem fala e não fala dos «haadam» nem mesmo dos «adam». Fala de um «ish» indefinido. Logo não fala dele, nem propriamente do Homem feminino em chamando «essa-aí» «isha», evoca uma «ideia platônica», uma entidade abstrata que seria anterior a suas pessoas, e que as sobreporia na linguagem. Logo eles seriam finalmente tirados um e o outro como de uma categoria lógica.

Na gesta dos Patriarcas o verbo LQH é correntemente associado à palavra ‘(SH)H e a expressão LQH ‘(SH)H quer dizer, como ainda hoje em dia, «tomar uma mulher» em todos os sentidos do termo. Assim Sarai, que Abraão por prudência faz passar por sua irmã, é levada (LHQ) na casa do Faraó (Gen 12,15) e quando este sabe a verdade diz a Abraão: «Tome-a e vai-te» (12,19). Mesma injunção ao servidor de Abraão (24,51) que recebeu a instrução de tomar (LQH) uma mulher para seu filho em seu país natal donde traz Rebeca para Isaac que a toma (LQH) na tenda de sua mãe (24,67). Etc., etc. Não é jamais a mulher quem toma o homem, mas se ela é sempre gramaticalmente «tomada por ele» não se encontra em parte alguma no resto da Bíblia alusão a esta falaciosa etimologia de seu nome atribuída ao Homem do Éden e que a queria «tomada dele».

Me dirão que «ish» e «isha» são praticamente sinônimos de «zakar» e «nekeva» que querem dizer macho e fêmea, e que o Homem, em Gen 1,27, foi Criado «zakar» e «nekeva». Ou melhor, precisa o texto, pois ele não se trata de um andrógino, Deus os criou, Criou as duas pessoas que compõem o Homem «zakar» de um lado e «nekeva» de outro. Mas seria impossível criticar estas duas palavras e através delas estas dias pessoas por um raciocínio pseudo-etimológico, como o Homem masculino o tenta aqui com as palavras «ish» e «isha». Jogo de palavras intraduzíveis, faz notar a Bíblia de Jerusalém. O que não a impede de o traduzir como Segond. De utilizar este jogo de palavras como eco, senão como prova da pretendida «suscitação» retardada da Mulher a partir do Homem (masculino) que teria sido Criado antes dela. Mas não é nada disto. M’Y (SH) não quer dizer «do Homem», no máximo «de um macho qualquer». Já vago em si, o termo é além disso indeterminado aqui. (Determinado se escreveria MH’Y (SH). Logo traduzo-o da maneira mais geral possível. M’Y (SH) = meish = de alguém.

LQHH = ela foi tirada.

A forma verbal está no «completo» que, no discurso direto como é o caso aqui, tem valor de presente. Segundo sua vocalização mais provável, é o passivo do intensivo (o «poual») de LQH, na terceira pessoa do singular feminino. O intensivo de LQH não existe no ativo (o «piel»), pelo contrário existe no reflexivo (o «hitpael») com o sentido de «se inflamar», que estaria de acordo muito bem com minha interpretação de Gen 2,12 onde Deus toma, retira (LQH na forma simples) levando à incandescência o famoso «costado». Como quer que seja, nosso LQHH pode ter o pronome Z’T que segue como sujeito e a alusão seria clara «ela é tomada, ela é inflamada, essa-aí», mas em meu entendimento mesmo se o Homem masculino o pense, para ele é ‘(SH) H o sujeito de sua frase, Z’T não sendo senão uma lembrança. É da etimologia que ele faz, não da psicologia. Ao nível das palavras, da derivação morfológica das palavras, é incontestável que «alguma» espécie de «alguém» mesmo se não se segue absolutamente senão ao nível das pessoas… Em grafia hebraica eles está menos seguro que ‘(SH) H «seja tomada» de ‘Y (SH). No entanto a inserção da semi-consoante Y pode constituir uma simples ampliação da raiz ‘(SH), sem significação particular. (Vomo o veremos para CYRM em Gen 3,7 e 11).

Z’T = essa-aí.

De novo, para fechar esta exclamação como a abriu, este pronome demonstrativo de distanciação traiu o Homem masculino apenas como seu autor. Se não inventou puramente e simplesmente a palavra «ish» ao mesmo tempo que «isha» para as necessidade da causa, se a tomou emprestado a seu vocabulário dos animais, é em se prevalecendo de sua qualidade de macho que quer, após reflexão, dar a seu «alter ego» um nome que o anexa, e que a subordina, ao menos verbalmente, à ideia «genérica» que se faz subitamente dele mesmo? É possível. E a tradição viu nesta pretensão uma justificação da lei patriarcal da «condição humana» onde é no entanto «o homem que sai da mulher» e não o contrário? É evidente, e é lamentável. Mas não está no texto, que põe todas as palavras de nosso versículo na boca do Homem (e a última exclamação na boca do Homem masculino). Há uma impressionante gradação (degradação) neste protótipo absoluto da linguagem humana, a princípio espontâneo, afetuoso, depois vagamente possessivo, enfim pseudo-científico avant la lettre. Mas no interior desta última exclamação — separada cronologicamente por anos talvez das duas primeiras — há também uma gradação (degradação) menos perceptível em francês que em hebreu. Pois o duplo Z’T (pronunciado «zott») que enquadra a etimologia proposta tem frequentemente o sentido neutro de «isso» ao invés de «essa-aí». Pode-se dizer que seu autor, considerado se exprimir no entanto em discurso direto, aí passa do «eu» e do «tu» ao «ele» e ao «ela», em seguida de «essa-aí» para «isso».