Veja-se a investigação sui generis deste pensador do que denomina “Bíblia das Origens“, os primeiros 10 capítulos da Bíblia. Seu conhecimento da língua hebraica juntamente com primorosa reflexão pessoal oferece a possibilidade de uma totalmente nova interpretação do Gênesis.
TÚNICAS DE CEGO
Da Criação ao dilúvio, a Bíblia das Origens conta poucas páginas, cerca de um centésimo da totalidade do que em linguagem cristã se denomina o “Antigo Testamento”.
A Bíblia das Origens não nos fala do passado como a Bíblia histórica, nem do futuro como a Bíblia profética, mas do presente. Do presente que em nós subsiste, apesar de nossa triste “condição humana”, de nossa prodigiosa “natureza” da qual ela nos ajuda a lembrar-nos.
No livro do Gênesis, três relatos da Criação provenientes, segundo a crítica, o primeiro e o terceiro da fonte “elohista” (Deus aí denominado Elohim) e o segundo da fonte “jeovista” (Deus aí sendo assinalado pelo tetragrama YHWH), se sucedem em uma ordem que não aquela de suas prováveis redações, mas que tem sua razão de ser:
- O RELATO DITO DOS SEIS DIAS DA CRIAÇÃO (Gn 1,1-2,3);
- O RELATO DITO DO JARDIM DO ÉDEN (Gn 2,4-3,24)
- a notícia biográfica de Adão (Gn 5,1-5).
O “ente” — de ontem, de hoje, de sempre — se encontra a princípio, vimos, em hebraico na sigla YHWH impronunciável e intraduzível que nomeamos “Deus” por hábito e comodidade. E é ele que preside não somente à “concepção” de nossa verdadeira “natureza” mas o psicodrama que põe em cena para nossa informação o relato assim dito “ingênuo” do Jardim do Éden. Ele aí preside mas depois desta “concepção” que é inteiramente sua obra, ele disto não é o autor mas o espectador, como veremos. E dão devemos jamais esquecer nem esta presença soberana no início, nem esta ausência, esta reserva não menos soberana em seguida, se queremos compreender o relato capital e a “Bíblia das Origens” em geral. Pois ela forma um todo. Um todo coerente, apesar da inversão cronológica que faz preceder no texto o relato do Jardim do Éden do relato da Criação em Seis Dias.
Em tradução, estes dois relatos que abrem a “Bíblia das Origens” parecem, senão pouco compatíveis entre eles, pelo menos muito diferentes por sua abordagem do mesmo evento fundador. Mas mostraremos que no essencial eles se completam perfeitamente, o mais recente se revelando ao exame muito precioso para interpretar sem arbitrariedade os traços mais “mitológicos” do mais arcaico, especialmente no que concerne a “natureza” do Homem. Nós o analisaremos portanto em conjunto, em paralelo, a partir do texto hebraico, nossa única referência.
“O Livro do Princípio” (título hebreu do Gênesis, vide Bereshith) se transformou na Septuaginta em “Livro do Gênesis”. Gênesis deriva da raiz grega comum às noções de “devir” e de “engendrar” que a noção de “Criar” no sentido bíblico justamente exclui (vide gênese e genesis).
Empreendendo a tradução latina da Septuaginta, e a comparando com versão hebraica original, São Jerônimo, descobriria pelo menos um outro erro literal tão grave na versão grega da “Bíblia das Origens“. Mas como ela reforçava a interpretação moralizante do conjunto, já tradicional no judaísmo e ainda acentuada no cristianismo, ele não fará que assinalá-la en passant sem ousar corrigi-la. Pelo contrário crerá restabelecer integralmente a distinção dos dois verbos, que a Septuaginta tinha confundido, traduzindo o primeiro por “creare” (genesis) e o segundo por “facere” (poiein).
Na Vulgata latina, obra de São Jerônimo no século III de nossa era, que se tornaria a versão oficial da Igreja romana antes de ser declarada infalível pelo Concílio de Trento, o hebreu BR’ é traduzido por “creare” e o hebreu ‘SSH por “facere” (“criar” e “fazer” nas bíblias em português).
Mas curiosamente o estudo etimológico nos ensina que “creare”, contração do latim “crescere” (“crescer”) deriva da mesma raiz sânscrita “kar” que “facere”, ao passo que as raízes hebraicas BR’ e ‘SSH não tem qualquer relação.