Os nomes possuem justeza (orthótes) por natureza ou por convenção?

Excertos de Juvenal Savian Filho, “Metafísica do ser em Boécio

Duas teses percorrem o Crátilo, na tentativa de responder à questão: os nomes possuem justeza (“correção, exatidão” — orthótes) por natureza ou por convenção? Com efeito, enquanto juiz, Sócrates assume, num primeiro momento do diálogo, o partido da justeza natural, fundamentando-se no ser permanente que todas as coisas possuiriam, independentemente de nós; assim, quem fixasse os nomes, sob a guia do dialético, neles imprimiria a forma própria de cada ente nomeado. Aí residiria a justeza dos nomes ou a justa denominação que existiria naturalmente para cada um dos seres, pois eles, os nomes, terão sido dados por alguém que terá considerado a natureza das coisas (“um artesão de palavras”, onomatourgós / demiourgós onomáton). Nesse sentido, os nomes exprimiriam essa natureza, e a validade de sua significação natural (physis) fundar-se-ia sobre sua origem numa “sábia imposição” (thésis, títhemi). Essa dinâmica seria bem representada, de maneira negativa, quando Crátilo ri de seu interlocutor, dizendo que “Hermógenes” não é um nome que lhe convém1; aliás, Krátos fizera o mesmo com Prometeu, dizendo que os deuses lhe haviam atribuído um nome falso ao chamá-lo de Prometheus, afinal ele não soube “calcular antes” as consequências do roubo do fogo2.

Num segundo momento do diálogo, porém, Sócrates passa a levantar algumas questões que relativizam as conclusões obtidas no primeiro momento, e constata que os nomes não apenas podem ser inexatos, mas também que o uso deles interfere sobre a sua própria fixação. Além disso, Sócrates se mostra convencido de que, no conhecimento das coisas, ir diretamente a elas é melhor do que se deter nos nomes que as designam. Com efeito, embora as palavras “funcionem”, porque nãó”há dúvida de que elas “significam”, elas podem, muitas vezes, estar em contradição entre si e ser claramente mal estabelecidas. Se é assim, os nomes não teriam, portanto, uma segunda e superior justeza “natural”, um isomorfismo com relação às coisas, como ocorre com os números, mas somente a justeza primeira e minimal de um acordo e de uma convenção.

Como se sabe, todavia, o diálogo não termina com uma adesão a uma ou outra das duas posições; ao contrário, Platão insiste que os nomes, mesmo que se os suponha estabelecidos por uma convenção, como queria Hermógenes, ou fixados pela natureza, como pretendia Crátilo, não são sempre justos. Assim, por exemplo, pode-se entender por que há uma série de nomes como epistéme, bébaios, historia, pistós, mnéme que exprimem movimento, mas que também podem exprimir repouso.

Essa estrutura do Crátilo, organizada em torno de três concepções diferentes, pode ser vista reproduzida, ainda, no próprio vocabulário empregado por Platão, especialmente no que tange ao uso de títhemi e seus correlatos: (1) na exposição da teoria de Crátilo, para mencionar o acordo dos nomes com a physis, Platão fala de “im-posição” dos nomes, [ho tà onòmata] thémenos / tithémenos, [he tôn onomáton] thésis; (2) na exposição de Hermógenes e na crítica final de Sócrates a Crátilo, para indicar oposição à physis, Platão fala de “convenção”, synthémenoi, [orthótes onomáton] synthéke, [onòmata] synthémata”, (3) no fim do diálogo, como que preludiando o Sofista e a teoria das partes do discurso, Platão fala de “composição”, tis synétheken, [onomáton kai rhemáton] synthesis.

Com efeito, o pano de fundo da reconstrução platônica da problemática referente à justeza das palavras parece constituir-se pelo mobilismo universal de Heráclito e pela imobilidade do ser de Parmênides; o primeiro, sob a forma da variação que se observa na fixação dos nomes; o segundo, sob a afirmação de que, para cada objeto, determina-se, naturalmente, um signo e um nome. É curioso notar que a terceira concepção levantada por Sócrates, ao dizer que os nomes nem sempre são justos (exprimindo, por exemplo, movimento, mas podendo também exprimir repouso), faz o conjunto do Crátilo apresentar uma estrutura (organizada em torno das três posições) que reproduz, de certa maneira, um ritmo análogo ao apresentado pelo conjunto formado pelos textos do Crátilo, do Teeteto e do Sofista: o Crátilo, ao relativizar duplamente a tese da retidão natural dos nomes, dá certa vantagem a um “convencionalismo”, a uma possibilidade de alteração, e, portanto, ao mobilismo3; já o Teeteto, refutando a tese da mobilidade, privilegia a estabilidade. Caberá, assim, ao Sofista, como se sabe, estabelecer no horizonte do ser tanto a mudança como a estabilidade, pois, ao mesmo tempo em que a imutabilidade será condição necessária do intelecto, também o movimento será uma das formas necessárias do ser.


  1. O nome “Hermógenes” significa “da raça de Hermes”, deus da riqueza, e não conviria ao interlocutor de Sócrates, porque, ao que consta, ele não disporia de grandes recursos (nem de dinheiro nem de palavras). Cf. Crátilo 408b. 

  2. Cf. Ésquilo, Prometeu acorrentado, vv. 85-87. Pode-se ver na composição do nome Prometeu a preposição pro, “antes”, tomada como prefixo, e uma variação (metheus) a partir do substantivo mêtis, “medida”, “conhecimento exato”. 

  3. O que parece difícil de negar é que o Crátilo represente uma mudança no conjunto da investigação platônica, porque, em busca do ser, ele deixa a pesquisa etimológica e anuncia o que estava por vir: “Bah! Savoir comment il faut apprendre ou découvrir les êtres, peut-être est-ce là trop lourde tâche pour toi et moi! C’est déjà beau de reconnaître qu’il ne faut pas partir des noms, et qu’il vaut beaucoup mieux apprendre et rechercher les choses elles-mêmes en partant d’elles-mêmes qu’en partant des noms” (Crátilo 439b).