Nissa Homem à Imagem

Maria Candida Monteiro Pacheco — S. Gregório de Nissa
Sem as numerosas notas de rodapé que enriquecem o texto

O homem-à-imagem — A participação — imagem e semelhança — natural e sobrenatural — os atributos da imagem — a imagem como pleroma — a teoria da dupla criação.

O corpo e a alma são, como vimos, elementos essenciais do composto humano, nenhum deles podendo constituí-lo separadamente. Formam, ambos, uma natureza, um princípio de acção. Na análise dessa relação, S. Gregório evita cuidadosamente dois extremos possíveis: a sua acidentalidade ou a sua fusão completa.

Como entender, então, a união do espírito e do corpo? O cap. XI de De hominis opificio é uma meditação sobre esse tema. Assinala as contradições que contém e tenta esclarecê-las recorrendo à palavra de Deus: «Façamos o homem à nossa imagem e semelhança».

Desde o início da teologia cristã e durante todo o período patrístico, este versículo 26 do I Capítulo do Gênesis foi largamente comentado, estimulando uma nova antropologia. O tema do homem-à-imagem será, ao longo dos tempos, um dos mais ricos e complexos do pensamento ocidental, originando uma larga tradição filosófica e mística.

Esta especulação, de ordem religiosa, encontra-se com um velho tema clássico. Com efeito, já na Grécia se equacionava o problema das relações dos deuses e dos homens e se definiam duas atitudes possíveis: ora se acentuava a sua separação — pelo menos na literatura de Homero e Hesíodo é esta a primeira forma de pensar — ora se vincava a sua semelhança. A afirmação da syngeneia entre homens e deuses cedo ultrapassa a primeira representação de índole mais pessimista. Remontando possivelmente ao Orfismo antigo, encontra plena expressão em Platão. A partir dele, torna-se corrente em Aristóteles, nos estoicos e nos neoplatônicos, especificamente em Plotino.

A semelhança entre deuses e homens traduz-se pelo reconhecimento da presença de um elemento divino no humano, ou melhor, no que o homem possui de mais perfeito: o intelecto.

Em Platão, encontramos ainda outro dado importante. Numa célebre passagem de Teeteto (176 b), define a fuga ao sensível como o tornar-se semelhante a Deus (homoiosis theo kata to dynaton).

O parentesco divino (syngeneia) é, pois, uma virtualidade e a homoiosis o seu dado complementar. Significa a possibilidade dinâmica de realização do divino em nós, dependente, em última análise, dum esforço do homem, e, como tal, sujeita a certas reservas, traduzidas pelas expressões platônicas kata to dynaton, oti malista. Como escreve J. Pépin, «C’est entre la syngeneia et l’homoiosis que, dans la tradition platonicienne, se joue la vie de l’homme».

Ao afirmar que participar é ser semelhante, Platão cria, pois, uma dialéctica de participação, ou seja, a possibilidade de uma semelhança dissemelhante e duma dissemelhança semelhante. Daí decorre a possibilidade de encarar a imagem sob duas perspectivas diversas e complementares: ora acentuando a sua diversificação do arquétipo, ora valorizando a sua semelhança.

A filosofia platônica usa o termo eikon nesse duplo sentido. Assim, ao definir o sensível como imagem do inteligível, o Fedro (250 b) faz ressaltar o seu carácter antinômico. Por outro lado, na medida em que o mundo visível é um reflexo e uma cópia do modelo, existindo, porque dele participa, o Parmênides (132 d), Crátilo (439 ab) e Timeu (29 bd) acentuam o valor positivo e dialéctico da eikon.

Estes dados platônicos estão, certamente, na base do tema do homem-à-imagem tal como é explorado pelos Padres da Igreja, mas misturam-se com elementos bíblicos, através dalguns textos específicos como Gênesis I, 26-27, Romanos VIII, 29, 2, Colossences I, 15, Hebreus I, 3 e I S. João, 3, 2.

O primeiro autor que reúne estas duas correntes é Fílon de Alexandria, enriquecendo e espiritualizando uma temática que se tornará central em toda a Patrística. Assim, encontramo-la em Santo Ireneu, Clemente de Alexandria, Orígenes, Santo Atanásio. Apoiados na radical diferença ontológica entre o Criador e a criatura, os autores cristãos acentuarão, de modo geral, o aspecto positivo da imagem, como participação na plenitude do ser.

Para S. Gregório de Nissa, a noção do homem-à-imagem é um dos pilares da sua antropologia. Ora acentuará o aspecto positivo da sua semelhança com o arquétipo, ora a sua diferenciação e correlativa deficiência, tornando-se complementares essas duas perspectivas. Criado à imagem de Deus, o homem possui por participação os bens que convêm a Deus por natureza: vida, razão, sabedoria, vontade, amor, implicando a plenitude da imagem a unificação de todos estes aspectos.

Assim se explica a posição única e privilegiada do homem entre os seres cósmicos. Como um rei, só surgiu no kosmos quando o seu trono estava preparado: a virtude reveste-o como a púrpura, a imortalidade é o seu ceptro, a justiça a sua coroa. A sua exata semelhança com a beleza do arquétipo manifesta a sua dignidade e a sua grandeza, que ultrapassam a das outras criaturas sensíveis.

Qual é, porém, o significado metafísico da constituição do homem-à-imagem?