Monofisistas

Excertos da tradução em português de José Antoino Ceschin do livro de Joan O’Grady, “Heresy: Heretical Truth or Orthodox Error? a Study of Early Christian Heresies”

A heresia nestoriana foi importante por causa das divisões que criou dentro da Igreja do Império oriental — divisões que o movimento provocou e que foram exacerbadas por uma heresia que surgiu em reação a ele. A heresia a que nos referimos — chamada de monofisitismo — acabaria criando um cisma na Igreja, um rompimento no Império e o surgimento de Igrejas orientais separadas, que existem até hoje — as Igrejas dos monofisistas no Egito e na Abissínia.

Dos conflitos intelectuais que tiveram lugar a respeito de ambas as heresias — o nestorianismo e o monofisitismo — surgiu a fórmula que se transformou em doutrina católica “ortodoxa” sobre a Natureza dé Cristo. Esta fórmula foi aceita no Concilio de Calcedônia, em 451. Mas, antes de se chegar a um acordo final, tinha que se lidar ainda com a heresia monofisista.

Eutíquio, o superior de um mosteiro perto de Constantinopla, apresentou uma doutrina antinestoriana ao extremo. Enfatizava a Divindade em Cristo a ponto de negar sua humanidade. Usou a frase “uma Natureza encarnada de Deus, o Verbo”, para explicar que: na Encarnação, as duas naturezas, de Deus e do homem, fundiam-se numa única, inteiramente Divina. Jesus era homoousion com o Pai, mas não com a humanidade. Esta doutrina de uma Natureza Divina era chamada de eutiquianismo, ou, mais comumente, de monofisitismo.

Esta ênfase exagerada sobre a Divindade provocou suspeitas de heresia entre os líderes da Igreja em Constantinopla, e Eutíquio foi condenado no sínodo que se realizou ali no ano de 448, presidido por Flaviano, bispo de Constantinopla. Eutíquio conseguiu convencer o imperador Teodósio II a convocar um concilio para uma nova audiência sobre o caso. Teodósio concordou e, assim, no ano de 449, reuniu-se em Efeso o notório “Concilio Ladrão”. Nesse concilio, os participantes desceram a níveis baixís- simos de comportamento.

O Papa Leão I tinha escrito uma carta ao bispo Flaviano, definindo em termos lúcidos o que no Ocidente era considerado doutrina “ortodoxa” sobre o Ser de Cristo. No Concilio Ladrão, essa importante carta, conhecida como o “Tomo de Leão”, recebeu a recusa de audiência, no meio da revolta tumultuada dos presentes. Os bispos ameaçavam-se mutuamente de morte; a multidão fazia manifestações violentas; o bispo Flaviano foi tão maltratado que acabou morrendo, e o bispo de Alexandria (sucessor de Cirilo) excomungou os líderes de Antioquia e o próprio Papa!

Naquela época, cada uma das metades do Império Romano tinha um imperador, e o imperador do Ocidente, Valentino III, uniu-se ao Papa para anular os decretos do concilio. Uma paz temporária veio com a morte de Teodósio, em 480. Ele tinha apoiado os bispos recalcitrantes e seus aliados, mas os novos imperador e imperatriz do Oriente eram leais ao Papa.

No ano de 451 foi convocado em Calcedônia o quarto Concilio Ecumênico. Participaram seiscentos bispos, quase todos vindos do Oriente, além de dois delegados papais. Por fim foram anuladas as decisões tomadas no Concilio Ladrão. Eutíquio foi declarado herege e tanto o monofisitismo como o nestorianismo foram condenados como heresias. O Tomo de Leão foi aprovado e, como veremos adiante, aceito como base para a fé cristológica ortodoxa.

Apesar do acordo no Concilio de Calcedônia, as disputas e divergências a respeito da Natureza de Cristo continuaram se manifestando em todo o Império oriental, até o século VII e a invasão dos árabes. Os imperadores mudaram de lado entre os monofisistas e os antimonofisistas, e muitos bispos também mudaram de lado dependendo de quem era o imperador.

Entre 484 e 519 aconteceu um cisma entre Constantinopla e Roma. Os papas foram presos e antipapas empossados, enquanto aqueles que apoiavam os bispos rivais lutavam entre si e igrejas monofisistas separadas eram estabelecidas no Egito, na Etiópia e na Síria.

Com a chegada do século VII, as disputas entre os cristãos nestorianos e os monofisistas se haviam disseminado por toda a Ásia Menor e o Norte da África. Maomé, que a princípio inclinava-se com sinceridade em favor do cristianismo, ficou horrorizado com a desunião entre os cristãos e achou que tinha sido chamado por Deus para liderar não apenas os pagãos árabes mas também os traidores de sua fé, no retorno à Religião da Unidade. Claro que as Igrejas cristãs, em constantes disputas, não tinham defesa contra as pressões que vinham do islamismo.

Na parte oriental do Império Romano, as disputas cristológicas só foram resolvidas durante o sexto Concilio Ecumênico em 680, quando foi contido o monotelitismo, a doutrina que defendia uma única vontade divina em Cristo, e que na verdade era uma heresia gerada pelo monofisitismo. Naquele Concilio de Constantinopla afirmava-se que, da mesma forma que existiam duas naturezas em Cristo, nele manifestavam-se também duas diferentes vontades, uma humana e outra divina. A decisão desse Concilio marcou o fim das controvérsias cristológicas. As partes em disputa perceberam tarde demais que deviam colocar um fim a suas lutas para tentar defender-se contra os invasores islâmicos.

O monofisitismo se havia dividido em inúmeras escolas e seitas, cada uma mais abstrusa do que a outra. Mas, ao final do século V, as disputas estavam na sua maioria vinculadas à política — Roma contra Constantinopla, Antioquia contra Alexandria, a corte imperial contra o nacionalismo crescente — de modo que as ideias religiosas e doutrinárias tendiam a desaparecer. A importância do monofisitismo em relação à formação do dogma “ortodoxo” cessou virtualmente depois do Concilio de Calcedônia, em 451. No entanto, as ideias monofisistas tiveram significativa influência sobre a teologia na Igreja cristã oriental e sobre todos os cristãos do Oriente.

Quando a controvérsia começara, os monofisistas formavam uma parte intensamente religiosa e piedosa da comunidade, com muitos dos seus seguidores pendendo para um tipo místico de religião. Apesar de todas as disputas políticas e teológicas que estavam desfigurando a Igreja, o século VI foi a era dos grandes autores espirituais dos mosteiros orientais, assim como da florescente arte religiosa bizantina.