Termo utilizado no “Tratado do Salvador”, para se referir a um dos moradores da “casa” dividida da parábola “Fogo sobre a terra”, citada no Evangelho de Tomé – Logion 71. Segundo Roberto Pla, o nome deste membro da “casa” é tomado da trama mitológica grega, mas não não há que entender por esta causa que a função designada à “nora” evangélica implique segundo o autor gnósticos uma dependência do pensamento helênico. Nada há da “moira” gnóstica no “Livro do Salvador” que se equivale a um Destino, um fado, uma fatalidade pessoal, tal como sucede com a “moira” grega. Somente guarda certa relação com respeito à vida do homem, com a missão que foi designada pela mitologia à terceira das parcas, a pequena Anthropos: a morte.
A inclusão da “moira”, a nora, na casa evangélica da personalidade humana, certifica o fato natural, inexorável, de que todo homem é mortal e testifica que o destino de todo homem na terra finaliza quando Anthropos, a inflexível, corta seus fios de vida. “Quando a moira teceu seu destino — diz Homero ante a morte de Heitor — decidiu que ele saciaria aos rápidos cães” (Ilíada XXIV, 2019). Mas nos “Livros do Salvador”, a morte se explica sem mitificação alguma: “Quando suceda que se tenha cumprido o tempo daquele homem, primeiro virá a moira, conduzindo o homem à morte”.
O que procura esclarecer o gnóstico é que a “nora” da perícope evangélica serve para recordar a todos em linguagem parabólico que um dos cinco ingredientes que entram na composição humana é a vida mortal, quer dizer, a morte. Esta é a “moira”, que tem por “sogra” à “mãe”, seja esta a natureza, ou o “soma” natural, porque não é capaz de tomar dela a vida sem fim que nela reina, senão a morte que com ritmo inexorável emerge de sua superfície e converte em caducidade para amanhã a vida de hoje.
Mas isto não quer dizer que a “moira” — anthropos — é um inimigo do homem, senão pura representação dos condicionamentos do homem; não vai adiante ditando seu destino: “somente, o consigna”. O autor gnóstico o explica bem: a “moira” — diz — “não está mesclada com eles” (com os outros componentes que intervêm na consciência), “senão que se deixa dirigir por eles, os segue”. (Caminha), “atrás da alma e do soma”; e quando a alma, unida ao soma, vai para morte, então a “moira”, convive com ambos, pois os dois, em tal caso, são de “abaixo”, do mortal deste mundo.
São os apegos da alma pelo “soma”, os que conduzem à morte conjunta; a do soma, pela natureza, e a da alma, por eleição. Isso o diz Jesus, segundo o consigna o quarto evangelho: “Se não credes que Eu-Sou, morrereis em vossos pecados” (Jo 8,24). Mas não será a “moira” a que proporcione a morte, pois ela vai atrás, Anthropos submissa, e se reduz a cortar os fios quando escuta a ordem. O gnóstico confirma: “A moira seguirá detrás do homem até o dia de sua morte. Esta é a obra da moira, e não realizará outra ação fora desta”.
Também se tenta explicar no “Livro do Salvador” o que ocorre com a “casa” humana quando cai nela o fogo que Cristo “arroja sobre a terra” (vide Fogo sobre a terra). Os mistérios feitos fogo — diz — perseguem no soma ao antimimo do espírito” e a moira, para separá-los da força (espírito) “de sorte que o antimimo, a moira e o soma fiquem de um lado e a força e a alma de outro”.
A obra dos “mistérios do fogo” consiste em incendiar de conhecimento à alma, de onde esta, uma vez desapegadas de si mesma suas já desnecessárias aderências de soma, de transitoriedade e limitação, uma vez purificada mediante o lavado do batismo, se ve livre do seguimento da “moira”, posto que nada subsiste nela, na alma, que possa morre. Quer isto dizer que a alma (psyche), que é “vida”, fica, uma vez lavada do que é morte, em um estado de donzela virginal, e se manifesta como “o que é”, quer dizer, idêntica a si mesma, e portanto, “una” com Cristo, que é sua essência.
Dito com outras palavras ainda menos míticas: a alma é “vida” sempre, mas vida mortal quando seus conteúdos conscientes estão unidos aos resíduos mortais do corpo e do mundo, e é vida eterna quando pela katharsis advinda por conta do batismo de fogo (conhecimento), é transformada em psyche virginal, tal como se anuncia na donzela do canto isaíano. Neste último caso, a alma é reputada como a “filha” da “casa” pessoal humana; mas em seu estado impuro de vida mortal, não é qualificada como “filha” na parábola da “casa” evangélica, senão que no quinário do homem integral desempenha o papel de “nora”, quer dizer, a “moira”.
Quanto ao que ocorre coma “moira” ao final de tudo, o explica o gnóstico com sua linguagem mítica peculiar: “Desde o momento em que diga (a alma) o mistério — diz — abandonará à moira em seu lugar com os arcontes”. O “lugar” dos arcontes, significa os níveis de consciência onde reina a morte. Dessas regiões se evade a alma mediante o mistério do batismo e se desprende da companhia da “moira” para sempre. Então — agrega — a alma os dirá (aos arcontes): “tomai para vós vossa moira, pois desde agora já não voltarei a este lugar”. Não há que esquecer que o vocábulo grego “moira”, significa, parte, ou porção. Ao devolver a “moira” aos “arcontes”, o que faz a alma é abandonar a seus verdadeiros donos a “porção” mortal que lhe foi designada no mundo.
No relato evangélico, a causa da destruição do “aguilhão” da morte, destruição operada pelo batismo de fogo, se descrevem em outro contexto mítico, mas com a mesma significação: “Este é o pão que baixa do céu, para que quem o coma não morra” (Jo 6, 50).