THOMAS MERTON — ENTRE O INSTINTO E A INSPIRAÇÃO
A UNIÃO DAS VONTADES DE DEUS E DO HOMEM
Há uma outra dificuldade que explica por que deve a inteligência renunciar aqui a um pouco da sua primazia, e esperar pela vontade. A razão não é admitida às profundezas em que a vontade se mantém aprisionada por uma obscura experiência de união imediata com Deus. A inteligência, em si menos diretamente iluminada por Deus, conhece um pouco do que está acontecendo, mas não tudo. Ela desempenha nessa hora um papel secundário em relação à vontade. É como se a vontade passasse a servir de fonte de informação para a inteligência. Isso explica a doutrina da tradição agostiniana pela qual a vontade é a mais alta faculdade da alma. Esses teólogos julgavam segundo a sua experiência de oração onde a vontade (como qualquer tomista concordaria) age de fato num plano mais alto do que a inteligência, por estar em contato mais imediato com Deus. Se a vontade realmente tivesse primazia sobre todas as outras faculdades, esta situação não seria precária. A razão só teria de aquiescer a toda informação filtrada da experiência da vontade. Além disso, a alma seria desde já perfeitamente ordenada: enquanto a vontade tomaria posse de Deus, a razão obedeceria à vontade dirigida por Deus, e todas as outras faculdades acompanhariam. Neste caso, podia-se concluir que a maior beatitude era a oração de Quietude ou a oração de plena união em que Deus é possuído sem ser conhecido.
Há para a alma grandes perigos latentes num estado em que a vontade entra em contato experimental com Deus pelo amor, ao passo que a inteligência não recebe uma iluminação correspondente. Se Deus guardasse a vontade em permanente união, os perigos seriam quase insignificantes. Mas de fato não é assim. Quando o contemplativo emerge da Noite dos sentidos e entra profundamente na prática habitual da oração de quietude, com toques ocasionais da plena união mística em que as faculdades são absorvidas, a vontade entra em contato com muitos objetos de prazer, que são espirituais mas não em tudo divinos. Daí a necessidade de uma grande discrição.
A ação de Deus na oração passiva aprofundou e alargou o poder natural da vontade em experimentar o prazer espiritual. Nada há de miraculoso nas novas capacidades espirituais que a alma descobre em si mesma. Elas fazem parte da sua natureza, mas tinham o seu exercício frustrado e entorpecido pelo apego aos prazeres sensíveis. Agora estão livres e começam a recobrar frescura e vigor.
Quais são essas capacidades? Só mencionarei uma como exemplo. É o senso metafísico do ser e de todos os transcendentais. Muitas pessoas podem sequer compreender as noções abstratas de ser, verdade, beleza, unidade, como são propostas pelos filósofos. Não têm nenhuma capacidade para apreciar essas realidades, que para eles não passam de simples palavras. Para excitar o interesse dos que vivem aprisionados ao nível da experiência dos sentidos, e não têm familiaridade com o pensamento e a intuição filosófica, é preciso apresentar-lhes exemplos concretos e particulares de ser, de verdade e outros. O nível intelectual da civilização moderna é claramente indicado por tudo aquilo que vêm e ouvem em torno de si os mie vivem no “mundo”, de manhã à noite, nos anúncios, “verdade”, “beleza”, só são apreciados em suas manifestações mais fragmentárias. Centenas de milhões de gordos cidadãos estão em vias de beber copázios de cerveja gelada. Centenas de milhões de moças exibem sabão, meias, cigarros, automóveis e um milhão de outras coisas, convidando os que contemplam tais anúncios a apreciar os produtos com olhos de consumidor. É tudo que vale como “ser” num mundo decidido a estourar-se.
Quando, pela prática da oração e a disciplina interior, um homem se livra das preocupações inúteis com o que é fragmentário e particular, e pode fazer um uso moderado das coisas materiais sem se deixar levar demais por elas, e quando Deus lhe alargou a capacidade de alegria espiritual com as graças infusas da oração, ele começa a experimentar alguns dos prazeres que pertencem por direito à alma humana, mas que muitos esqueceram. Metafisicamente falando, os valores que podem ser provados na experiência sensível de coisas particulares, podem ser desfrutados em forma concentrada e muito mais alta, numa intuição espiritual das propriedades transcendentais do ser, Procurarei explicar isto de um modo que seja aceitável mesmo àqueles que secretamente lamentam não ter estômagos infinitos para devorar todos os frangos fritos do mundo. Não nos é possível entrar na posse de toda a bondade dos alimentos existentes, simplesmente nos assentando para comê-lo com a vista. Apesar das ambições de Gargantua, os nossos corpos não são equipados para esse feito.
Entretanto, toda a realidade existente e toda a bondade de cada coisa que é boa, pode ser espiritualmente provado e desfrutado numa simples intuição metafísica do ser e da bondade como tal. O puro e intelectual deleite desta experiência faz de toda a embriagues causada pelo vinho parecer um simples remanescente. Não falo aqui de nada místico, mas da mera intuição natural do ser, da bondade. Aqui o ser, a bondade, participados por todas as coisas particulares, são compreendidos numa simples intuição luminosa que banha o nosso espírito de luz e alegria. É uma sorte de êxtase natural em que o nosso ser reconhece em si um parentesco transcendente com tudo que existe, e como que sai de si mesmo em busca de cada ser, e volta a si mesmo para achar todo ser. Num momento de rica iluminação metafísica elevamo-nos acima dos acidentes e das diferenças específicas para descobrir todas as coisas numa realidade transcendental sem diferenciação, a qual é o ser em si mesmo.
O fundamental dessa experiência é, sem dúvida, uma súbita penetração intuitiva do valor de nosso próprio ser espiritual. É uma profunda consciência metafísica da nossa realidade, não do eu superficial comum, psicológico, comprometido na busca de muitos desejos temporais e na fuga de muitos temores, mas da profunda realidade substancial de nosso ser pessoal. Neste momento de luz, a alma pode experimentar da liberdade inata que lhe é devida como uma propriedade do espírito. Ela pode até passar a uma intuição do Ser Absoluto que transcende absolutamente o nosso mais elevado conceito de ser e de espírito. Nesta intuição metafísica de que falo, a inteligência não entra numa visão imediata do Ser infinito. Deus é percebido numa inferência que parte do ser criado. Ele é conhecido no reflexo que deixa nas profundezas vitais do nosso espírito, do qual Ele é o Criador e que é o espelho onde se projeta a sua imagem.
E, no entanto, a intuição metafísica do ser e de suas propriedades transcendentais é uma grande coisa. Ela não pode dar-se sem alguma pureza moral e seu efeito natural é fortalecer a alma e ajudá-la a livrar-se de perigosas ligações. Atrás desta intuição há uma outra, a intuitiva apreciação do Ser Absoluto de Deus, uma intuição qualitativa, colorida de afetividade, em virtude da luz analógica derramada sobre a ideia do Criador pela intensa vitalidade e alegria que o espírito, consciente de ser a sua criatura, concebe em si mesmo.
É uma coisa tão grande essa intuição, que os filósofos pagãos pensavam que era a maior bem-aventurança. É é de fato a maior a que pode o homem chegar por seus poderes naturais.
Esse prazer, essa plenitude intelectual que é uma resposta parcial à mais profunda necessidade do ser espiritual do homem, a necessidade de contemplação, é acessível à natureza. Mas é sob a direção da graça que ela é atingida logo e mais perfeitamente. Contudo, os que experimentam a plenitude espiritual sobrevinda com os primeiros começos da oração infusa quase nunca são conscientes da distinção entre o que é essencial à verdadeira contemplação e o que é só acompanhamento acidental da contemplação. Eles parecem pensar, como uma questão de fato, que tudo que lhes acontece em conexão com o que sentem ser o movimento da graça, deve ser simplesmente tabelado como “uma graça”, e aí deixado. Aparentemente supõem que, logo que alguém chega, à oração de quietude, a distinção entre natureza e graça se volatiliza: é um místico, não tem nada mais com a “natureza”.
É um ponto seguro que em todos os níveis da vida mística até que a alma tenha finalmente passado pela “Noite do espírito”, os movimentos da graça e as inspirações do Espírito Santo agem num organismo espiritual que não só exerce funções naturais, mas, como vimos, começa a redescobrir em si mesmo capacidade que a natureza jamais suspeitara possuir. As luzes da oração que. nos fazem imaginar que começamos a ser anjos, não passam, às vezes, de sinal de que começamos a ser homens. Não temos uma ideia bastante elevada de nossa natureza. Pensamos chegar às portas do céu, e eis que apenas entramos em nosso próprio reino de seres livres e inteligentes.
Aqui entra a vaidade espiritual e afeta a nossa atitude em face das graças da oração. Queremos que tudo seja “extraordinário” e sobrenatural. Cada coisa que se move em nós tem de ser o dedo de Deus. E se é Deus que age, precisamos de ficar passivos. Depressa nos convencemos de que as delícias sentidas são místicas e que não podemos resistir. Queremos ser embriagados de alegria, e assim nos dispomos a crer que toda embriagues espiritual é necessariamente “sagrada” e, por conseguinte, não deve submeter-se ao exame da razão. Mas é aqui justamente que a razão precisa de dar a sua mais importante contribuição à vida espiritual.
Seria extremamente perigoso entregar a vontade a si mesma e colocar a alma inteira sob as ordens duma faculdade cega, ainda mais nesta noite de inebriantes delícias, de que algumas vêm de Deus, mas outras, da invenção de ocultas potencialidades espirituais da nossa natureza.
Negar à inteligência o poder de discriminar os impulsos que movem a vontade e às vezes transportam a alma fora de si, num rapto anormal, seria tão prudente como soltar da jaula um leão faminto, para a maior glória de Deus. Ninguém faz ao mundo um mal maior, do que aqueles que estiveram à beira da mística, mas que degeneraram na mais irracional rendição a cada paixão que soube transfigurar-se em anjo de luz.
Nem a Igreja nem os místicos cristãos ensinaram tal irracionalidade, jamais admitida pelos verdadeiros sábios de qualquer terra ou religião. Vimos perfeitamente que ela não é a doutrina de S. João cia Cruz.