THOMAS MERTON — ENTRE O INSTINTO E A INSPIRAÇÃO
A NOITE DOS SENTIDOS DE SÃO JOÃO DA CRUZ
A Noite dos Sentidos é um período de provação em que as faculdades da alma começam a ser movidas passivamente por Deus, sem, porém, perder ainda o seu poder de mover-se a si mesmas. Chama-se Noite não porque se “escureçam” nela a razão e a vontade, ou se privem de sua força natural, mas por causa da restrição que sofrem em seu modo natural de atividade. A inteligência não pode naturalmente conhecer nada sem agir sobre o material apresentado pelos sentidos. A vontade também precisa desse material para agir no plano natural.
Na Noite dos Sentidos, a ação infusa de Deus leva a mente a cansar-se do raciocínio. A mesma ação oculta torna a vontade farta de todo desejo. Em lugar de raciocinar, o intelecto prefere descansar numa simples intuição das verdades de fé. Em lugar de sair à cata de fins particulares, a vontade recolhe-se no unificado e simples amor de Deus, que é o Fim único de todo o nosso esforço.
Mas como a ação infusa de Deus ainda é tênue, e a experiência que ela produz é vaga e obscura, as faculdades se encontram num estado que lhes parece equívoco. E por não apreenderem claramente o que lhes acontece, flutuam entre a angústia e a consolação sem jamais saber porque se angustiam ou porque se consolam. Sua atividade própria ainda não está seriamente obstruída (como poderá ser mais tarde), mas não traz nenhuma satisfação e parece mais ou menos infrutuosa. E, entretanto, não concebe esta altura, como deviam comportar-se para ficar simples e frutuosamente passivas sob a misteriosa ação de Deus. Além disso, não é sempre que Deus age nelas de modo especial. E quando Ele não está agindo, em vez de ficarem passivas, devem fazer alguma coisa por si mesmas. É muito difícil, no início, saber quando Deus está infundindo na alma essas delicadas e passivas inspirações.
Finalmente, é uma lei da vida mística que as faculdades da alma só entram em estrita passividade, quando, absortas em Deus no êxtase, perdem todo poder de mover-se. Senão, a sua passividade é apenas relativa. É, pois, de grande importância compreender em que sentido e em que grau, a mente e a vontade do homem ficam passivas na Noite dos Sentidos e na Oração de Quietude. A importância vem, primeiro, de que as faculdades, enquanto ainda capazes de agir por conta própria, podem frustrar a delicada obra de Deus por atividades mal avisadas, especialmente à hora da oração. Depois, porque se ficam inteiramente inertes, deixarão de fazer o simples trabalho de cooperação que Deus ainda lhes exige.
Em resumo, o princípio que eu quero sublinhar, é o seguinte: embora a meditação discursiva seja praticamente impossível na Noite dos Sentidos, e, nesse tempo, os começos de motivação passiva que Deus infunde exijam que a atividade da mente e da vontade seja purificada, simplificada e reduzida à unidade, ainda resta, entretanto, algum trabalho para ambas. Isso vale especialmente para o início da oração mental diária. Porque, na Noite dos Sentidos, a ação divina comumente não se apodera da alma sem que ela primeiro se disponha de algum modo a recebê-la. Somente mais tarde, quando se faz mais habitual oração da Quietude, a luz passiva de Deus envolve as faculdades na translúcida semi-obscuridade da “ignorância”, e isto nos momentos mais inesperados do dia.
Na Noite dos sentidos, as inspirações passivas da oração contemplativa trabalham principalmente sobre a vontade. É ela que é primeiro submetida aos movimentos passivos do Espírito Santo. É ela que primeiro começa a ser absorvida e a ficar cativa sob o encanto da misteriosa presença de Deus. Pois não é no conhecimento (gnosis) mas no amor, que Deus se faz imediatamente presente à alma contemplativa. O amor logo de início representa um papel proeminente na contemplação, sem que esta deixe de ser formalmente um ato do intelecto.
Mas se a vontade é absorvida pelo poder da graça secreta, nos princípios da oração infusa ela ainda pode mover-se e ficar livre. E se é mal conduzida pela inteligência, ela ainda pode lutar por sua liberdade, pode agir por sua conta em vez de descansar na serena obscuridade do amor divino. Mas o êxito de nossa cooperação às inspirações de Deus nesse estado ainda depende largamente da discrição sobrenatural da nossa razão.
É coisa certa que a vontade, quando começa a ser absorvida no misterioso amor que Deus nela produz passivamente, através do dom de Sabedoria, se torna momentaneamente independente da razão, ao menos enquanto começa a ser diretamente guiada por Deus na íntima experiência de valores que são apreciados de um modo que transcende à inteligência.
A vontade, tocada pela chama de amor na sábia obscuridade de sua secreta passividade, de algum modo “aprende” e “conhece” as coisas de Deus, segundo um modo que a razão não pode suspeitar. Contudo, não pode a vontade só por si emitir o juízo estimativo que subjetivamente decide do real valor dessa experiência. É por isto que o dom de Sabedoria distribui as suas inspirações entre a vontade e a inteligência. É assim que deve ser, porque, embora passivamente, a vontade é movida com extrema delicadeza, e continua sujeita à direção da inteligência. Se a razão não distingue um pouco dos valores saboreados pela vontade, ela a desviará, privando toda a alma do alimento e da alegria sobrenatural.
Se, pois, é bom saber que o raciocínio em demasia é um obstáculo à ação infusa de Deus sobre a alma nesta Noite dos Sentidos e na oração de quietude, é também conveniente lembrar que uma discreta e intuitiva ação da inteligência é o que Deus mais exige de nós nesse estado. De fato a feliz cooperação de nossa alma às graças infusas depende duma passividade que é sumamente humilde por ser inteligente. Afinal, se humildade é verdade, ela pressupõe uma inteligência sobrenaturalmente iluminada. Somos obrigados, pois, a concluir que a razão desempenha uma parte muito importante, embora secundária, na Noite dos Sentidos. Aqui também ela se situa em sua posição crucial, sobre os limites que dividem a natureza e o sobrenatural. Ela é a sentinela posta pela fé para montar guarda à fortaleza da alma, que é a vontade, e examinar cada estrangeiro que se apresenta às portas. Na penumbra que desce sobre a alma na Noite dos sentidos, a razão deve ser particularmente vigilante e corajosa, recusando o ingresso a todos esses instintos da natureza humana que se apresentam à oração como ruidosos companheiros, ávidos de introduzir a sua expressão peculiar. A razão deve, acima de tudo, ser firme na exclusão desses bons amigos. Intelectuais tagarelas, não seriam eles bem acolhidos no silêncio e na simplicidade da solidão interior onde a vontade se levanta para um encontro inefável com o verdadeiro Deus, num plano que fica muito além do conceito. Somente os que adquiriram alguma familiaridade com a prática da oração interior podem perceber quão delicada e corajosa é a tarefa aqui confiada à inteligência, que é a responsável, em boa parte, pela pureza da vontade, sem a qual é impossível a contemplação. É uma tarefa extremamente delicada, a exigir da razão o sacrifício de sua natural propensão para resolver os problemas através dos seus discursos e análises. O seu governo exercer-se-á menos por intrincadas reflexões e elaborados planos de ação, que por uma sábia economia de prudentes decisões, nascidas de silenciosa reflexão em que a razão é um ouvinte atento às sugestões da graça.