Merton Contemplata

Thomas MertonSementes de Contemplação

CONTEMPLATA ALIIS TRADERE

Na contemplação, nós não vemos Deus; — nós conhecemo-Lo pelo amor: porque ele é puro amor e, quando experimentamos , o que é amar a Deus por Ele Mesmo, conhecemos, por experiência, Quem ele é e o que Ele é.

A verdadeira experiência mística de Deus e a suprema renúncia a tudo o que não é Deus, coincidem. São dois aspectos da mesma coisa. Na verdade, quando o nosso espírito e a nossa vontade estão totalmente libertos de todo o apego às criaturas, estão logo totalmente cheios pelo dom de amor divino, não porque as coisas fatalmente tenham de acontecer dessa maneira mas porque tal é a Sua vontade, o dom do Seu amor por nós. Omnis qui reliquerit domum vel pairem — vel uxorem propter nomen meum, cenluplum accipiet et vitam aeternam pos-sidebit.

Nós recebemos Deus na proporção em que nos encontramos despojados e vazios de qualquer elo que nos prenda às Suas criaturas. E é quando tivermos sido libertados de qualquer outro desejo que saboreamos a perfeição de uma incorruptível alegria.

Deus não nos dá a Sua alegria só para nós, e, se pudéssemos possui-Lo só para nós, não O possuiríamos de forma alguma. Qualquer alegria que não transborde das nossas almas e não ajude os outros homens a regozijarem-se em Deus, não nos vem de Deus. (Mas não julgueis que deveis ver como ela transborda para a alma dos outros. Na economia da Sua graça, podeis estar partilhando os Seus dons com alguém que não conhecereis nunca antes de alcançar o céu.)

Se recebemos Deus na contemplação, recebemo-Lo não só para nós mas também para os outros.

Mas se a nossa experiência de Deus vem de Deus, um dos seus indícios pode ser uma grande desconfiança quanto a revelá-la aos outros. Falar do dom que Ele nos concedeu parece-nos que é desperdiçá-lo e deixar uma nódoa na pura transparência onde a luz de Deus brilhava. Ninguém é mais reservado do que um contemplativo a respeito da sua contemplação. Por vezes, causa-lhe quase uma dor física falar a alguém do que avistou de Deus. Ou, pelo menos, é-lhe intolerável falar disso como de uma experiência pessoal.

Ao mesmo tempo, anseia ardentemente por fazer com que todos partilhem da sua paz e da sua alegria. A sua contemplação fá-lo olhar de maneira nova o mundo dos homens. Olha em volta de si com uma secreta e tranqüila expectativa, que talvez não admitisse em ninguém, esperando descobrir no rosto doutros homens ou ouvir nas suas vozes algum sinal de vocação e de aptidão para a mesma profunda felicidade e sabedoria.

Surpreende-se a falar de Deus aos homens em quem espera ter reconhecido a luz da sua própria paz, o despertar do seu próprio segredo; ou, se não pode falar-lhes, escreve para eles, e a sua vida contemplativa continua imperfeita, se estiver privada de partilha, de camaradagem e de comunhão.

Em nenhum momento da vida espiritual é mais necessário ser completamente dócil e submisso aos mais subtis impulsos da vontade de Deus e à Sua graça do que quando tentais partilhar com outros homens o conhecimento (gnosis) do Seu amor. É bem preferível ser desconfiado a ponto de correr o risco de não o partilhar nada com os outros a vê-lo perdido para vós, ao esforçar-vos por dá-lo a outrem antes de vós próprios o terdes recebido. O contemplativo que tenta pregar a contemplação antes de saber verdadeiramente o que ela é, impede, ao mesmo tempo, ele próprio e os outros de encontrarem o trilho seguro que leva à paz de Deus.

Em primeiro lugar, substituirá a realidade da luz que nele há, pelo seu natural entusiasmo, imaginação, poesia, e deixar-se-á absorver pela preocupação de transmitir algo que é praticamente intransmissível. E, embora haja nisto qualquer benefício mesmo para a sua própria alma (porque é uma espécie de meditação sobre a vida interior e sobre Deus), corre o risco, apesar de tudo, de se desviar da simples luz e do simples silêncio em que Deus Se faz conhecer sem palavras e sem idéias, e de se perder em argumentação, verbosidade e metáforas.

A mais alta vocação para o Reino de Deus é partilhar a própria contemplação com outros e levar outros ao conhecimento (gnosis) experimental de Deus que é dado àqueles que O amam perfeitamente. Mas a possibilidade de equívoco e erro é exatamente tão grande como a própria vocação.

Em primeiro lugar, o simples fato de terdes descoberto algo de contemplação não significa ainda que estejais em condições de o transmitir a alguém. Contemplata aliis tradere implica duas vocações: uma, ser um contemplativo, e outra ainda, que é ensinar a contemplação. Ambas devem ser verificadas.

Mas, nessa altura, quando julgais estar ensinando contemplação aos outros, cometeis novo erro. Ninguém ensina contemplação, exceto Deus, que a concede. O melhor que podeis fazer é escrever ou dizer alguma coisa que servirá de oportunidade a alguém para se inteirar do que Deus dele pretende.

Um dos maiores erros a que um extemporâneo esforço para partilhar a contemplação com outros pode levar, é supor que os outros quererão ver as coisas do vosso ponto de vista pessoal, quando, indubitavelmente, não querem. Os outros levantarão objeções a tudo que disserdes e encontrar-vos-eis envolvido numa controvérsia teológica — ou, pior ainda, numa discussão pseudo-científica — e nada é mais inútil para um contemplativo do que a polemica. Não há qualquer obrigação de incitar a seguir o gênero de contemplação que significa tanto para vós, pessoas com uma vocação diferente. E, se estas são chamadas à contemplação, não é uma longa e tortuosa argumentação cheia de termos técnicos e de princípios abstratos que as ajudará a chegar a ela.

Aqueles que se apressam a pensar que devem ir para diante e partilhar a sua contemplação com outros homens, tendem a destruir a sua própria contemplação e dela dão aos outros uma noção falsa, confiando demasiado nas palavras, na linguagem e nos discursos para realizar a obra que só pela luz infusa de Deus pode ser levada a bom termo no mais profundo dá alma humana.

Muitas vezes faremos muito mais no sentido de tornar os homens contemplativos, deixando-os sós e ocupando-nos apenas do que nos diz respeito — ou seja, da própria contemplação —- do que perturbando-os com o que julgamos saber da vida interior. Na verdade, é quando estamos unidos a Deus, no silêncio e nas trevas, e quando as nossas faculdades se ergueram acima do nível da sua atividade natural e repousam na pura e incompreensível nuvem que envolve a presença de Deus, que a nossa oração e a graça que nos é concedida tendem, por sua própria natureza, a transbordar invisivelmente através do Corpo Místico de Cristo. É então que permanecendo juntos na união do Espírito Único de Deus, nos influenciamos uns aos outros mais do que nunca o pudemos conseguir pela nossa própria união com Deus, pela nossa espiritual vitalidade n’Ele.

Aquele que possui, em grau muito fraco, o dom dessa oração, o simples começo da contemplação, e que até mal se dá conta d’alguma coisa do que possui, pode fazer imenso pelas almas dos outros homens apenas mantendo-se silenciosamente atento à obscura presença de Deus, acerca da qual lhe é impossível ter esperança de pronunciar uma frase inteligível. E, se experimentasse pôr-se a falar dela e a raciocinar a tal respeito, perderia imediatamente o pouco que dela possui, e isto sem ajudar alguém e, menos que alguém, a si próprio.

A melhor maneira, portanto, de nos preparar para a possível vocação de partilhar a contemplação com os outros, não é estudar como havemos de falar e raciocinar a respeito de contemplação, mas abster-nos, tanto quanto possível, de falar e de discutir, e recolhermo-nos no silêncio e na humildade de coração, onde Deus purificará o nosso amor de todas as suas humanas imperfeições. Então, no momento que Ele escolher, impelirá a nossa mão para o trabalho que Ele quer que façamos e encontrar-nos-emos a fazê-lo sem sermos capazes de nos aperceber como chegamos a isso ou como tudo isso começou. E, durante esse tempo, o trabalho não nos absorverá de maneira a perturbar-nos o espírito. Seremos capazes de conservar a nossa tranqüilidade e a nossa liberdade, e, acima de tudo, aprenderemos a confiar em Deus quanto aos resultados e a não lisonjear a nossa vaidade com a insistência de pretender lápidas e espetaculosas conversões em todos a quem nos dirigimos.

Talvez isto pareça fácil no papel e talvez realmente o fosse, se nós todos fôssemos simples e não opuséssemos dificuldades a que Deus realizasse a Sua obra em nós e por meio de nós. Mas, habitualmente, uma das últimas barricadas do egoísmo e que numerosos santos recusaram abandonar por completo, é a obstinação em querermos nós próprios fazer o trabalho, obter os resultados e com eles nos regozijarmos. Somos todos gente que quer colher os louros de qualquer empreendimento. E talvez fosse por isto que alguns santos não ascenderam à mais alta contemplação: queriam realizar demasiado por si próprios. E Deus deixou-os levar a sua avante.

E, embora a contemplação — como tudo quanto é bom — exija ser partilhada e só seja perfeitamente gozada e possuída por cada um de nós quando é possuída em comum por todos que a ela são chamados, não devemos esquecer que essa perfeita comunhão só pertence ao céu.

Acautelai-vos, portanto, de considerar que certas pessoas, porque as estimais e sois naturalmente inclinado a escolhê-las para amigos e para com elas partilhar vossos naturais interesses, foram também chamadas para contemplativos e devem aprender convosco como vir a sê-lo. Podem ter ou não ter aptidão. Há talvez uma forte probabilidade de que haja aptidão, mas, se a houver, contentai-vos com deixar Deus prover a que se desenvolva neles. Alegrai-vos se Ele vos utilizar como uma oportunidade ou um instrumento, mas acautelai-vos de vos pôr no Seu caminho com a vossa inata tendência rotária para a camaradagem. Porque, neste mundo, não é bom perseguir um objetivo, seja ele o melhor, com excessiva impetuosidade, e quem não ignora, por experiência, que Deus está em toda a parte e sempre presente e sempre pronto a fazer-Se conhecei por aqueles que O amam, não se apressará a preferir o incerto valor duma atividade humana à tranqüilidade e à certeza dessa infinita e essencial posse.