Merton A Vida Silenciosa

Thomas Merton — A Vida Silenciosa
Tradução das Religiosas da Companhia da Virgem

Excertos:

  • PUREZA DE CORAÇÃO

    PRÓLOGO — O QUE É UM MONGE?
    O monge é um homem chamado pelo Espírito Santo a renunciar aos cuidados, desejo e ambições dos outros homens para dedicar toda sua vida à procura de Deus. O conceito é conhecido. A realidade significada pelo conceito é um mistério. Pois, concretamente, ninguém na terra sabe com precisão o que seja «buscar a Deus» enquanto não se tiver posto em marcha para achá-lo. Homem algum pode dizer a outro em que consiste essa procura, se esse outro não for, ao mesmo tempo, iluminado pelo Espírito que fala em seu coração. Em suma, ninguém pode procurar Deus a não ser que já tenha começado a encontrá-lo. Ninguém pode encontrar Deus sem que primeiro Deus o tenha encontrado. O monge é o homem que procura Deus porque por Ele foi achado.

Em resumo, um monge é um «homem de Deus».

Uma vez que todos os homens foram criados por Deus para que o pudessem encontrar, todos são, de certo modo, chamados a ser «homens de Deus». Mas nem todos são chamados a ser monges. Um monge, portanto, é alguém chamado a se dar exclusiva e perfeitamente ao único necessário a todos os homens — a busca de Deus. A outros é-lhes permitido procurar Deus por caminho menos direto, levar no mundo uma vida digna, fundar um lar cristão. O monge põe essas coisas de lado, embora possam ser boas. Dirige-se a Deus pelo atalho direto, recto tramite. Retira-se do «mundo». Entrega-se inteiramente à oração, à meditação, ao estudo, ao trabalho, à penitência, sob o olhar de Deus. A vocação do monge se distingue até das outras vocações religiosas, pelo fato de que ele se dedica essencial e exclusivamente à busca de Deus, em lugar da busca das almas para Deus.

Encaremos o fato de que a vocação monástica tem tendência a se apresentar ao mundo moderno como um problema e um escândalo.

Numa cultura basicamente religiosa, como a da Índia ou a do Japão, o monge é, por assim dizer, coisa normal. Quando a sociedade inteira está orientada para além da busca meramente transitória dos negócios e do prazer, ninguém se espanta de que homens dediquem a vida a um Deus invisível. Numa cultura materialista, porém, fundamentalmente irreligiosa, o monge se torna incompreensível porque ele «não produz nada». Sua vida parece ser completamente inútil. Nem mesmo os cristãos têm sido isentos dessa ansiedade por causa da aparente «inutilidade» do monge. Estamos acostumados com o argumento de que o mosteiro é uma espécie de dínamo que, embora não «produza» a graça, consegue esse bem-estar espiritual infinitamente precioso para o mundo.

Os primeiros Pais do monaquismo não se preocupavam com tais argumentos, se bem que possam ter valor quando bem aplicados. Eles não sentiam que a procura de Deus fosse algo que necessitasse ser defendido. Ou, antes, viam que se os homens não tivessem, em primeiro lugar, consciência de que Deus deve ser procurado, nenhuma outra defesa do monaquismo adiantaria.

Deus deve, então, ser procurado?

A mais profunda lei no ser do homem é sua necessidade de Deus, de vida. Deus é vida. «Estava nele a vida e a vida era a luz dos homens. E a luz brilhou nas trevas e as trevas não a compreenderam» (Jo 1, 4-5). Compreender a luz que no meio delas brilha, é a maior necessidade que têm nossas trevas. Por isso, deu-nos Deus como seu primeiro mandamento: «Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças». A vida monástica nada mais é do que a vida daqueles que tomaram o primeiro mandamento com a maior seriedade, e, como diz S. Bento «nada preferiram ao amor de Cristo».

Mas, quem é Deus? Onde está?

O monaquismo cristão é busca de alguma pura intuição do Absoluto? Um culto do Bem supremo? A adoração da Beleza perfeita e imutável? O próprio vazio de tais abstrações torna o coração frio. O Santo, o Invisível, o Todo-poderoso é infinitamente maior e mais real do que qualquer abstração inventada pelo homem. Mas Ele próprio disse : «O homem não me pode ver e viver» (Êx 33, 20). Entretanto, o monge persiste em exclamar com Moisés: «Mostra-me a Tua face» (Êx 33, 13).

O monge, portanto, é alguém que procura tão intensamente a Deus que está pronto a morrer para poder vê-lo. Por isso é que a vida monástica é um «martírio» bem como um «paraíso»; uma vida ao mesmo tempo «angélica» e «crucificada».

S. Paulo resolve, do seguinte modo, o problema: «Deus que disse: ‘Do seio das trevas brilhe a luz’ foi quem fez brilhar sua luz em nossos corações, para que façamos brilhar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Jesus Cristo» (2 Cor 4, 6).

A vida monástica é a rejeição de tudo que obstrui os raios espirituais dessa misteriosa luz. O monge é alguém que deixa atrás de si a ficção e as ilusões de uma espiritualidade meramente humana, para mergulhar na fé em Cristo. A fé é a luz que o ilumina no mistério. É a força que se apodera das íntimas profundezas de sua alma e o entrega à ação do Espírito divino. Espírito de liberdade. Espírito de amor. A fé o segura e, como outrora fez com os antigos profetas, «firma-o sobre seus pés» (Ez 2, 2) diante do Senhor. A vida monástica é vida no Espírito de Cristo, vida em que o cristão se dá inteiramente ao amor de Deus que o transforma na luz de Cristo.

«O Senhor é o Espírito, e onde está o Espírito do Senhor, ali está a liberdade. E todos nós que, com o rosto descoberto, refletimos como espelhos a glória do Senhor, nós nos transformamos nesta mesma imagem, cada vez mais resplandecente, conforme a ação do Senhor, que é espírito» (2 Cor 3, 17-18). O que S. Paulo diz da vida interior de todo cristão, torna-se, em realidade, o principal objetivo do monge vivendo em solidão no claustro. Procurando a perfeição cristã, procura o monge a plenitude da vida cristã, a inteira maturidade da fé cristã. Para ele, «viver é o Cristo».

Para estar livre, da liberdade dos filhos de Deus, renuncia o monge ao exercício da sua própria vontade, ao direito à propriedade, ao amor do conforto e do bem-estar, ao orgulho, ao direito de fundar uma família, à faculdade de dispor do seu tempo como bem entende, a ir onde quer e a viver conforme bem lhe parece. Vive só, pobre, em silêncio. Por quê? Por causa daquilo em que ele crê. Crê na palavra de Cristo que prometeu: «Em verdade vos digo: Não há ninguém que tenha abandonado a casa ou os pais, ou os irmãos, ou a esposa, ou os filhos, por causa do reino de Deus, e que não receba muito mais no tempo presente, e, no século futuro, a vida eterna» (Lc 18, 29-30).

Este livro é uma meditação sobre a vida monástica, por alguém que, sem nenhum mérito seu, tem o privilégio de conhecer essa vida por dentro. Se há nestas páginas algo de valor, vem, não de algum talento especial do autor; este procura apenas servir de porta-voz a uma tradição multissecular, como indigno descendente de S. Bento e dos primeiros Apóstolos, a quem todos os monges consideram como seus Pais espirituais.

Assim como nada há de mais detestável do que a tentativa de fazer propaganda da vida monástica, não há coisa mais agradável que a esperança de poder tornar mais conhecido o mistério íntimo de uma vida tão rica da misericórdia e bondade de Deus.

Nestas páginas consideraremos primeiramente alguns dos aspectos da vida monástica como tal. Em seguida, falaremos das mais importantes Ordens monásticas que florescem na Igreja, na época atual. É nossa intenção dar uma ideia do espírito monástico como se encontra entre os cenobitas (beneditinos e cistercienses) e os eremitas (cartuxos e camaldulenses).

Falando da sublimidade do ideal monástico e da excelência desse modo de vida particular, de maneira alguma queremos dar a impressão de que as Ordens monásticas sejam, por sua própria natureza, superiores aos outros institutos religiosos. Pois, afinal, a dignidade principal do monge encontra-se no fato de ter ele abandonado todo espírito de concorrência e a busca da glória humana, contentando-se em ser o último de todos. Mais exatamente falando, não tem o monge uma norma que lhe permita comparar-se aos outros religiosos. Seus olhos não estão voltados para os campos de batalha da planície, dirigem-se para o deserto onde Cristo será visto novamente, à direita do Pai, vindo na glória sobre as nuvens do céu.

O horizonte monástico, é, nitidamente, o do deserto. Mesmo quando escreve para cristãos no mundo, ou pinta para alguma paróquia ou comunidade a imagem de Cristo Rei, tem o monge seu rosto voltado para o deserto. Seus ouvidos não estão atentos aos ecos do apostolado que investe sôbre a cidade de Babilônia, e sim ao silêncio das longínquas montanhas em que os exércitos de Deus e do inimigo se defrontam em misterioso combate, do qual a luta no mundo é apenas pálido reflexo.

A Igreja monástica é a Igreja do deserto, é a Mulher que fugiu para o ermo, a fim de escapar do dragão que procura devorar o Verbo Menino. É a Igreja que, por seu silêncio, nutre e protege a serpente do Evangelho plantada pelos apóstolos no coração dos fiéis. É a Igreja que, pela oração obtém a fortaleza para os apóstolos, eles próprios tantas vêzes oprimidos pelo monstro. A Igreja monástica é a que foge para um lugar especial que lhe foi preparado por Deus no deserto e esconde seu rosto no Mistério do silêncio divino, e ora enquanto se desenrola a luta do grande combate entre a terra e o céu.

Sua fuga não é uma evasão. Se o monge fosse capaz de compreender o que se passa dentro dêle, poderia dizer que muito bem sabe como o combate está sendo travado em seu próprio coração.