Maritain Mito do Progresso

Jacques Maritain — O Mito do Progresso

O MITO DO PROGRESSO

“A perfectibilidade do homem é realmente indefinida; os progressos dessa perfectibilidade, já agora a salvo de todo poder que quisesse detê-los, não têm outro limite senão a duração do globo onde a natureza nos lançou”. Condorcet

“Quer enlace a vítima do seu ardil nas avenidas, ou fira a sua presa em perdidas florestas, que é o homem, o homem eterno a não ser o mais perfeito animal de rapina?” Baudelaire

— Meu caro Philonoüs, porque me arrastou você hoje pelas estradas do vale de Chevreuse, e insiste em visitar o nosso austero Théonas, por quem, ao que parece, você nutre escassa simpatia?

— Quero pedir a adesão do seu amigo para um certo projeto, um projeto capaz de assustar talvez os espíritos timoratos, mas que nos proporcionará um método infalível de reconciliação social e de ordem no progresso.

— Pode-se conhecer mais de perto esse belo projeto?

— Oh! Nas suas linhas gerais é muito simples. Tem-se notado muitas vezes que o regime comunista, pelo qual suspiram tantos dos nossos contemporâneos, encontra perfeita realização entre os monges, que não esperaram Lenine para extirpar pela raiz a propriedade individual.

— A deles, caro amigo, e não a alheia. Mas deixemos de parte esse detalhe. Concitaria então você os nossos contemporâneos, adeptos do comunismo integral, a ingressar em massa nas ordens religiosas?

— Não, senhor! Essa solução seria eminentemente retrógrada. Que desastres não acarretaria, sob o ponto-de-vista de uma política demográfica de repovoamento! Ao contrário, proponho que os monges formem grupos profissionais e se filiem à C. G. T. Theonas poderia ser-nos de grande ajuda nessa empresa, fundando, do seu lado, um sindicato de anacoretas contemplativos (S. A. C.) provisoriamente afiliado à Confederação dos Trabalhadores Intelectuais (C. T. I.) Essa organização representaria a primeira aplicação da receita política cuja fórmula com razão me orgulho de propor aos espíritos refletidois: de um lado, bolchevizar o Cristianismo; de outro, cristianizar o bolchevismo. Na minha opinião, os verdadeiros liberais reconhecerão aí a fórmula perfeita da “união sagrada”, a mais moderna e acabada expressão do seu sublime ideal.

— Explique melhor o seu pensamento, caro Philonoüs.

— Desde o declínio das concepções autoritárias herdadas da Idade Média pelos próprios reformadores protestantes, o esforço dos maiores espíritos, animados por um largo e fecundo liberalismo, o esforço dos Bodin, dos Leib-niz, dos Lessing, dos Herder, tendeu constantemente a realizar a união dos homens acima de toda divergência dogmática, a união e até mesmo a unidade universal, pelo homem e para o homem, o congraçamento pela boa vontade subjetiva, isto é, pela disposição do sujeito, como você diria, por oposição à união na luz do objeto, esse problemático objeto de que Kant nos livrou. Pergunto se não convirá, portanto, no termo dessas nobres aspirações, colocar o fraternal amplexo de homens, como os cristãos e os bolchevistas, separados pelas mais fortes diferenças objetivas? Entre elas, inevitavelmente, se estabelecerá desde logo uma suavizante corrente osmótica. Assim se irá definindo e ganhando precisão a concepção moderna da Cidade de Deus, num contraste absoluto com o antigo tipo de unidade eminentemente representado pela Igreja Católica, e que pretendia congregar os homens por meio de uma verdade, e visando a um: bem que, na verdade, sempre foram um sinal de contradição.

— É verdade. E a Sociedade das Nações pode ser encarada como uma primeira realização desse ideal — um esboço bem frágil e tímido ainda, mas muito promissor — Ao contrário, os antigos pensavam que só a luz congrega, intellectualia et rationalia omnia congregans, et indestructibilia faciens, como diz Dionísio, o Areopagíta.

— O pseudo-Dionísio, caro amigo, o pseudo-Dionísio.

— Pois não. O pseudo-Dionísio, para lhe fazer a vontade. E a luz é essencialmente objetiva; é a luz do ser que, em todos os graus de participação criada, deriva da eterna luz subsistente. E tudo o que não quer reconhecer essa luz está necessariamente fora da unidade, de sorte que a luz, a um só tempo é princípio de paz e sinal de contradição. E, para fazer dos homens algo verdadeiramente uno, é preciso nada menos que a luz divina em pessoa, que os reúna na unidade de seu Corpo Místico.

É preciso confessar, além disso, que o subjetivismo e o egocentrismo humanitários que você tanto admira, de há século e meio para cá, deram belos frutos de paz, e prometem, outros frutos ainda mais suculentos. Mas, voltando ao seu projeto, reconheço que êle denota um certo gênio prático.

— Também penso assim. Vou mais longe do que Augusto Cotmte que, no fundo, não passava de um reacionário e que, na sua célebre tentativa de aliança com os “Inacia-nos”, só a que colheu foram lamentáveis humilhações. Coloco os monges, que são os mais típicos representantes da tradição e do passado, à testa do movimento que prepara o futuro, e que dirigirão para o seu termo, como sábios moderadores, ao passo que os puros bolchevistas, como observava Lavisse, cometeram o erro de querer acelerá-lo u,m pouco mais do que era razoável. Assim se realizará, sem efusão de sangue, com uma suavidade sem precedente na História, a grande transformação comunista que deve fatalmente produzir-se, visto que está na linha do Progresso, e nada resistir à lei do Progresso, você sabe tão bem quanto eu.

— Quanto ao progresso, o que sei muito bem é que a própria idéia do progresso necessário e universal é uma pseudo-idéia. Não é um conceito destinado a assegurar à inteligência uma certa penetração do real e, por conseguinte, não é mensurável e retificável por êle imas, ao contrário, é uma dessas fórmulas verbais que são tanto mais perfeitas no seu gênero quanto mais afastadas e independentes das coisas e mais arbitrariamente lhes são impostas, e às quais, como notava René Johannet, num artigo recente, o mundo moderno chama idéias por antífrase. Para compreender a sua gênese, remontemos até a idéia clara de Descartes. Da idéia clara, passemos então à idéia fácil, isto é, que permite o uso mais extenso possível, e que “explica” o maior número de coisas com o menor dispêndio de esforço e de gestos. Daí desçamos à idéia afetiva (ou emocional) que, a fim de se aplicar às coisas; sem levar em conta a sua natureza específica, e a fim de se derramar por simpatia sobre todos os domínios do pensamento, conota apenas um estado afetivo ou uma atitude prática do sujeito. Chegará você finalmente à idéia mito que, esvaziada de todo conteúdo intelectual, e destinada somente a provocar certas ressonâncias rituais na imaginação e no apetite, domina despoticamente o campo inteiro das representações, e o próprio individuo, que faz entrar em vibração, mal é proferida. Assim nasceram essas divindades ideológicas, essas pseu-do-idéias devoradoras do real, cuja constelação constitui a mitologia moderna, e na primeira linha das quais brilha a idéia de Progresso.

— Você me aflige. Para dizer a verdade, nem sequer consigo entendê-lo. A idéia de que os progressos da espécie humana são “tão necessários como o crescimento das ár-vores e das plantas”, como dizia no século dezoito o P. Ter-rasson, e que eles “se realizam em virtude de uma lei natural exatamente semelhante à que faz um homem crescer da infância à velhice, de sorte que, ern todos os domínios, o novo é sempre necessariamente melhor do que o antigo, essa idéia, a meu ver, nem sequer precisa de ser comprovada pela observação; ela se impõe ao meu espírito como imediatamente evidente.

— É o que eu supunha. De outro modo, não poderia entender como, a despeito dos mais sangrentos desmentidos da experiência, você se conserva imperturbável na sua adoração, a contemplar, de espírito tranqüilo, os desastres acarretados até aqui à humanidade por essa idéia-ídolo. e a remeter continuamente para o futuro as esperanças desmentidas no presente.

— Na verdade — disse nesse momento: Theonas. que se juntara a nós, havia algum tempo, pois tinha por hábito vir ao encontro de seus hóspedes e, não fora o receio de parecer singular, ter-se-ia prostrado diante deles saudando neles o Cristo, conforme a regra do bem-aventurado pai São Bento — na verdade, o dogma do progresso necessário da espécie humana procede de um dado simplicíssimo do senso comum a respeito do movimento, interpretado e falsamente generalizado por indolente metafísica, conforme a lei do menor esforço intelectual.

Consideremos o movimento ou a mudança pelo lado que chamamos a forma, isto é, o lado que determina e qualifica intrinsecamente as coisas. Toímemos como exemplo um caso em que a matéria é perfeitamente dominada pela forma, um organismo no seu período de crescimento. O senso comum vê imediatamente que neste caso a mudança se produz segundo a lei que ordena o menos perfeito ao mais perfeito, a infância à idade adulta. Considerando-se as exigências da forma, a mudança irá na direção do mais perfeito, consoante a lei do progresso.

Mas não há somente a forma a considerar, também há a matéria, isto é, conforme a palavra de Santo Agostinho, a mutabilidade pura, aquilo que, não sendo por si mesma- coisa alguma determinada, torna-se isto ou aquilo ao receber a forma. Ora, os filósofos nos dizem que, sendo mera potencialidade e, portanto, desejo passivo, aspiração da passividade informe pelo ser acabado e delimitado, a matéria temi pela forma uma espécie de fome. E, notemo-lo com atenção, esse apetite da matéria não tende às formas mais perfeitas com exclusão das demais; pelo contrário, tende a todas as formas, sejam quais forem, desde que sejam formas e que atuem. Tende a receber a marca de todos os aspectos do ser, a igualar-se perante todas as variedades possíveis de determinação e de acabamento, a realizar a adaequatio formar um: desejo nunca plenamente saciado e que desborda sempre infinitamente a possessão presente, pois a matéria só pode receber uma determinada forma sob a condição de privar-se das demais, desejo eternamente vagabundo, que está no fundo dos fluxos e refluxos intérminos da universal mutação.

— Estás virando poeta, ó Theonas, e pareces descrever não o appetitus materiae, mas um estado d’alma romântico.

— É que, a bem dizer, a eterna insatisfação do desejo é própria da matéria, a que Platão chamava o não-ser existente, e quando Giordano Bruno, Lessing, e todos os devotos do devir se gabam de que, para seu gosto, é melhor procurar do que encontrar, aspirar do que receber, desejar do que possuir, e querem ficar sempre insaciados, impõem ao ser humano a lei do informe como tal, daquilo que está abaixo de tudo, Se a alma humana em nada de criado encontra repouso, não é que seja feita para se mover sempre, é que nasceu para se fixar no Infinito.

Permitam-me, porém, retomar o fio dos meus pensamentos. Sendo o apetite da matéria tal como acabo de descrevê-lo, segue-se daí que, mesmo sob as formas mais perfeitas, ela conserva ainda radicalmente o desejo das outras formas, simplesmente por serem outras. No organismo animado, a matéria continua a desejar as formas inferiores dos elementos não-vivos e, ao seu paladar, a corrupção do vivente sabe bem. Reconheçamos pois que, a considerar-se o apetite da matéria, a mudança, longe de obedecer à lei do progresso, tenderá para o outro enquanto outro, mesmo para o inferior, e não para o mais perfeito.

Consideremos agora o seguinte: o homem é um ser ao mesmo tempo material e espiritual e, na medida em que nele a vida dos sentidos predomina sobre a vida da razão, o movimento da humanidade estará sujeito às condições da matéria: nesta mesma medida, esse movimento irá para o outro como tal, para o novo e não para o melhor. Veja os homens: basta que possuam um bem para querer outra coisa, a verdade cansa-os; quando por sorte lhes é dada, preferem deixá-la de parte, para buscar coisa nova.

É o apetite da matéria que então lhes chega ao coração é o gosto do de onde vieram que lhes sobe aos lábios.

Se bem que, na história, onde quer que o esforço da razão encontra uma oportunidade de êxito, a lei do sucesso tenda a predominar, — o que sobretudo ocorre na ordem da ciência ou na produção industrial — a lei das coisas humanas, ut-in-pluribus, i.é, na maioria dos casos, é a lei da mudança, da geração e da corrupção, não a lei do progresso.

Uma coisa humana, é verdade, faz exceção: é a Igreja, que deve crescer e se aperfeiçoar até a plenitude da idade de Cristo, e que não conhecerá declínio. Mas é que, precisamente, ela ao mesmo tempo é humana e divina. Anima-a uma “forma” onipotente, que tolera as fraquezas da matéria, mas por esta nunca é dominada. Em qualquer outra sociedade humana, a decrepitude segue-se ao crescimento, as formas inferiores alternam com as superiores, o bem e o mal se equilibram] e compensam de várias maneiras.

Seu erro, sutil Philonoüs, é o que reina desde Descartes na metafísica, é o esquecimento da matéria e das condições próprias da natureza humana. Se o homem fosse um puro espírito e, não obstante, evoluísse no tempo, seu movimento comprovaria o dogma do progresso necessário. Mas êle é apenas um animal racional, e nos anjos não há evolução no tempo. (Nota: Estando essencialmente ligado ao movimento, que por sua vez está essencialmente ligado à matéria, o tempo a bem dizer, tende à dissolução. Metafisicamente, todo progresso é um esforço de soerguimento contra o tempo. Não ignorava a antiga sabedoria esta lei fundamental.)

A idéia de um progresso histórico necessário no fundo não é menos contraditória da que a idéia de círculo quadrado. Comi efeito, quem diz progresso histórico diz evolução no tempo; quem diz evolução no tempo diz matéria; e quem diz matéria diz apetite radical do novo, desejo do outro como tal, e não do perfeito e, portanto, ausência de progresso necessário, ou de tendência necessária para o mais perfeito. O mito do Progresso é um exemplo excelente de pseudo-idéia, de idéia a um tempo “clara” para a sensibilidade e fundamentalmente absurda em si mesma.