Maritain Antinomias Progresso

Jacques Maritain — AS ANTINOMIAS DO PROGRESSO NECESSÁRIO

“Em verdade vos digo, o ônibus não é só um veículo de quatro rodas, é o carro do progresso, o símbolo da associação pacifica fundada na liberdade.” Edmond About

“Há de chegar pois o momento em que o sol não mais alumiará na terra senão homens livres, que outro Amo não reconhecem a não ser a sua razão; em que os tiranos e os escravos, os padres e seus estúpidos ou hipócritas instrumentos já não existirão senão nos livros de história e nos teatros.” Condorcet

A contradição fundamental que você, meu caro Theonas, punha em destaque na idéia de Progresso necessário da humanidade é acompanhada por muitas contradições acessórias, que fazem desse venerável mito um lugar de absurdos. Não lhe parece? Foi o que eu disse, ao cabo de um curto silêncio, enquanto Philonoüs, com ar desprendido, mirava o curso das nuvens. É singular, por exemplo, que, fundando-se quase unicamente na célebre comparação pascaliana da humanidade com um homem que cresce, os doutores do Progresso se precatam pudicamente de constatar que, no indivíduo, o crescimento é seguido pela velhice e pela decadência e, então, concluam que a humanidade gozará de um desenvolvimento sem fim.

Theonas. Por isso mesmo, esses doutores trocam aí de vocabulário. Nada é mais fácil, quando se trata apenas de comparações. Passam de um gênero de movimento a outro e, abandonando as metáforas tiradas do; movimento de crescimento, adotam as sugeridas pelo movimento local. Daí todas as fases, e etapas; os em marcha e os pr’a frente; daí as ascensões, os processos e élans de que se enriqueceu o pensamento moderno. Nosso amigo Philonoüs com certeza há de ter no seu repertório muitos exemplos que corroboram esta observação.

Philonoüs. Embora vocês mostrem pouco respeito pelo o que reverencio, de bom grado citarei alguns exemplos.

Sur la terre, tantôt sable, tantôt savane,
L’un à l’autre liés en longue caravane,
Échangeant leur pensée en confuses rumeurs…
Les esprits, voyageurs éternels, sont en marche.

Ce saint voyage a nom Progrès

Theonas (continuando a citação) “On avance toujours, on n’arrive jamais”.

Philonoüs. Assim fala o grande poeta da era democrática, cujo profundo gênio de pensador Charles Renouvier foi praticamente o único a discernir. Diz ele ainda:

Oh! ce navire fait le voyage sacré!
C’est l’ascension bleue à son premier degré…
Il est le vaste élan du Progrès vers le ciel…
Nef magique et suprême! elle a, rien qu’en marchant,
Changé le cri terrestre en pur et joyeux chant,
Rajeuni les races flétries, Établi l’ordre vrai, montré le chemin sûr,
Dieu juste! et fait entrer dans l’homme tant d’azur
Qu’elle a supprimé les patries!

Theonas “Rien qu’en marchant”. Como é consolador!

O Pseudo-Hylas. Lembra-me um bom sujeito que conheci outrora, um social-democrata russo. Inebriado por uma infusão de Spencer e de Marx, adoçada por Pierre Lavroff, êle evocava, o olhar perdido em êxtase, o homem “ao volante do automóvel histórico, a avançar, de etapa em etapa, na conquista do seu destino, em virtude de um inelutável processo evolutivo…”

Observe porém, no exemplo característico dos versos citados por nosso amigo, como funciona a idéia emotiva. Quem lê esses versos, nada recebe na inteligência. Entretanto, uma onda de afetos generosos palpita-lhe nas entranhas e vem soerguer-lhe o peito. Como poderia não ser verdadeiro o que faz vibrar a minha bondade? É o que êle diz a si mesmo. É a isso que chamamos julgar conforme o apetite e as reações subjetivas, em vez de julgar conforme o objeto. Por essa espécie de trapaça consentida é que, em boa parte, se explica, no mundo moderno, especialmente entre o público feminino, o sucesso das “consoladoras” filosofias do sentimento e da intuição. O mesmo se aplica à sedução exercida sobre muitos espíritos débeis pelo idealismo moral, a preços módicos, com que os espíritas e teósofos embrulham a sua mercadoria barata.

Theonas. Observe também o serviço prestado à musa do Progresso sem fim pelo movimento de translação. Se Hugo fosse buscar as suas imagens no movimento de crescimento, dificilmente nos arrebataria ao mostrar-nos, por exemplo, um micróbio a se tornar mamífero ou a inchar até o céu. Ao contrário, o movimento de translação, por isso mesmo que só afeta o sujeito de maneira extrínseca, presta-se admiravelmente aos alongamentos indefinidos.

Salientemos aqui uma nova contradição do mito do Progresso. O Progresso, tal como o concebem os seus adoradores, é essencialmente progressão indefinida, progressão sem termo, pois no mais distante ponto do futuro em que porventura nos situarmos pela imaginação, a lei do progresso necessário, que reina sobre a história com. uma necessidade metafísica, deve continuar a aplicar-se e, por conseguinte, a exigir novas perfeições. De outro lado, tão impossível é para o desejo tender ao que não seja um bem ou um fim que, para não se abismar no pélago da inexistência, com a paralisação total do esforço humano, esse mesmo Progresso supõe necessariamente a tendência a um termo. Por isto é que, depois de afirmar claramente que “on avance toujours mais n’arrive jamais” e, portanto, que a viagem é sem termo, o Poeta do Progresso logo acrescenta que a sua caravana marcha sem por um momento perder de vista a saber, a “sagrada Liberdade” e as “Núpcias Universais”. Não é verdade Philonoüs?

Le terme du voyage et l’asile où l’on tend,

Philonoüs. Certamente. E vejo com prazer que os amigos freqüentam os nossos autores. Rogo-lhes todavia notar que a contradição se resolve facilmente. Os grandes espíritos portadores da cultura, os filósofos, sabem que o progresso é indefinido, pois não há termo e não há fim para coisa alguma. Só o Devir se basta. Mas o povo, que os filósofos instruem, não sabe disto, e dá a vida alegremente pelo Progresso porque, cada vez que escapa ao Passado, está firmemente persuadido de que atingiu o termo dos seus desejos e que segura nas mãos afinal a felicidade que lhe prometemos. Sim, porque na generosidade do nosso coração compassivo e por assim dizer sacerdotal, e certos de assim conspirarmos com as forças divinas e acelerarmos o movimento do universo, nós prometemos ao povo a felicidade. Santa ilusão dos simples, mola secreta do mundo e do Progresso, coimo nos furtarmos a cercar-te com nossos esclarecidos desvelos…

Theonas. Deixe de posar de Doutor Fausto, meu caro Philonoüs. O papel não convém a sua alma inocente.

Philonoüs. Você não sabe do que é capaz a alma de um filósofo idealista.

Theonas. Sei sim, meu caro. Ou desconfio.

Philonoüs. Lembra-me que o padre Malebranche, que tinha um cachorro, entregava-se ao prazer de surrá-lo com toda a força em honra de Descartes e da teoria dos animais-máquinas. “Isto grita, dizia, mas não sente”. Por mim:, nos momentos de pessimismo, é o gênero humano inteiro que me dá ganas de surrar, quando vejo os insensatos obstáculos que opõe à lei do Progresso, à inelutável lei do Progresso. Nesses momentos, compreendo que os grandes obreiros do Progresso, os grandes amigos da humanidade, recorram ao fogo, ao ferro, a todas as formas da violência.

Theonas. Você me dá medo, Philonoüs.

Philonoüs. Eu mesmo me assusto, meu caro. Nesses momentos, parece-me que só numa coisa sou diferente de um Lenine (que também amava muito os homens, ao que nos conta Gorki, de modo tocante): digamos, se ime dão licença, é numa certa timidez na realização. Felizmente, velam sobre mim os fiéis princípios do meu impenitente liberalismo, e logo me recomponho.

Theonas. Recomponha-se, pois. E acabemos de analisar juntos a idéia de Progresso necessário. Com efeito, parece-me enxergar ainda nessa idéia uma curiosa contradição. Espero, Philonoüs, que nos ajude a descobri-la.

Philonoüs. Como queira. Mas duvido que me convença.

Theonas. Diga-me uma coisa: não é verdade que a edificação de uma casa supõe que os alicerces assentados não sejam alterados e que os materiais novos se acrescentem; aos antigos sem destruí-los? Assim, também, não é verdade que o crescimento de um organismo supõe a; imutabilidade do plano que preside, desde os primeiros esboços embrionárias, ao seu desenvolvimento, e exige, por assim dizer, a incorporação do novo ao antigo?

Philonoüs. É verdade.

Theonas. E para que a ciência cresça no espírito, quer se estenda a novos objetos e novas conclusões, quer o conhecimento de um mesmo objeto se torne cada vez mais seguro e profundo, não é verdade que os princípios dessa ciência devem permanecer firmes e que as elaborações adquiridas continuem adquiridas?

Philonoüs. Parece-me evidente.

Theonas. Devemos pois dizer que toda mudança capaz de aperfeiçoar o sujeito, isto é, todo progresso supõe que de um modo ou de outro, o futuro conserve as vantagens conquistadas pelo passado.

Philonoüs. Nunca pensei de outro modo. Vetera novis augere. Gosto de citar essa máxima, onde vejo o verdadeiro lema do progresso.

Theonas. Pois bem, se a lei do progresso, como você acredita, é uma lei metafisicamente necessária da história humana e talvez da natureza toda, e do ser das coisas, será preciso, se não me engano, que seu domínio seja universal e que nada, absolutamente nada, lhe escape. Não é verdade?

Philonoüs. Com efeito, parece-me, ó sábio Theonas, que assim deva ser.

Theonas. Não há então absolutamente nada do passado que não seja menos bom do que o presente, o qual por sua vez é menos bom do que o futuro?

Philonoüs. Devo conceder que a conseqüência é lógica.

Theonas. Portanto, querer perpetuar alguma coisa do passado no presente e pretender que ela subsista no futuro é um mal intolerável?

Philonoüs. Vá lá. Sou amigo do Devir.

Theonas. Por conseqüência, para se realizar plenamente, a lei do progresso exige a destruição de tudo o que nos lega o passado? Responda, caro amigo, siga sem receio o desenrolar do argumento. O Poeta de sua predileção, aliás, dá-lhe corajosamente o bom exemplo. Veja com que infalível sentimento das bênçãos da destruição êle escolhe os guias que, em cada etapa, vão à frente da sua caravana:

“Quand Jean Huss disparait, Luther pensif se montre,
Luther s’en va, Voltaire alors prend le flambeau;
Quand Voltaire s’arrête, arrive Mirabeau.”

Sobretudo, lembre-se da leal candura com que o poeta afirma, como verdade de imediata evidência, a identidade entre o Mal e o Passado, a ponto de fazer desses dois sinônimos o sujeito único de Um; período eloqüente;

“C’est l’instant ou le Mal, prenant toutes les formes…
C’est l’heure où le Passé, qu’ils laissent derrière eux,
Voyant dans chacun d’eux une proie échappée,
Surprendre la caravane assoupie et campée…”

Por um declive lógico e fatal, o mito do progresso necessário conduz assim a um bizarro maniqueísmo, um maniqueísmo cronológico, se é possível falar assim, no qual a fugidia linha do presente, do nunc fluens, separa o luminoso reino do Bem ou do Porvir, do sombrio domínio de Mal ou do Passado, que, ai de nós, corrói incessantemente o Bem e, a cada giro dos ponteiros, lhe devora a retaguarda, visto que, por uma deplorável fatalidade, um pouco do futuro torna-se a cada momento presente e, depois, passado.

Philonoüs. Com que facilidade, meu caro, atribui você aos outros uma mitologia de bárbaros. Recuso-me a reconhecer aí as idéias que me são caras.

Theonas. Faça um exame de consciência, Philonoüs, perscrute suas disposições latentes: conseguirá assim discernir a sombra móvel dessa mitologia no transfundo de seus preconceitos de homem moderno. Que lástima! A custo conseguimos formar uma idéia exata do lugar imenso, monstruoso que há já dois séculos ela ocupa no nosso subconsciente. Um poderoso espírito como Augusto Com-te deve-lhe a maior parte das suas deficiências. Sempre lhe ficou apegado, posto que percebesse muito bem certos caracteres do progresso real. (Reconhece, por exemplo, que nenhum progresso real pode ser indefinido e que todo progresso real supõe a conservação dos bens do passado.) É a mitologia do progresso necessário que está no fundo da lei dos três estados. Sob a influência dela é que Comte, juntamente com Saint Simon, considerava a Revolução francesa cerno o irrevogável advento de uma nova Jerusalém, cuja religião lhe estava reservado fundar. Chamava-a “a religião da Revolução”, esse contra-revolucionário! Enfim, foi essa mitologia, e talvez só ela que sempre o impediu de encarar sequer a possibilidade de um retorno à ordem católica. Com pasmosa ingenuidade, êle escreveu um dia que, para restabelecer o regime católico, seria preciso suprimir a filosofia do século XVIII e, como essa filosofia procede da Reforma, e a Reforma por sua vez não é mais do que o resultado das ciências de observação introduzidas na Europa pelos árabes, seria preciso afinal suprimir as ciências! É um texto notável, não lhe parece? Seio-o de cor. Êle ilustra, pelo menos tão bem quanto as sínteses histórico-econômicas de Marx, as tolices que a mitologia do Progresso pode levar um homem inteligente a proferir. E que dizer do próprio Marx ou de seu mestre Hegel? Que dizer de Proudhon e de sua Philosofia du Progrès? Se não me falha a memória, nesse livro é que Proudhon declara: “O que constitui a minha originalidade como pensador é que afirmo taxativamente, irrevogavelmente, em tudo e em toda a parte, o Progresso. O que é pois o Progresso? O Progresso, na mais pura acepção dó termo, isto é, na menos empírica, é o movimento da idéia-processo; movimento inato, espontâneo, essencial, incoercível e indestrutível, que está para o espírito assim como a gravidade está para a matéria”. Também não está mau, não lhe parece?

Voltemos porém à nossa discussão, caro Philonoüs. Voltemos às exigências auto-destrutivas do mito do Progresso. Por outro caminho, chegaremos talvez às conclusões que, há poucos instantes, você relutava em admitir. Quem diz progresso’ diz mudança. Sendo o progresso absolutamente necessário e o domínio a que a sua lei se aplica portanto absolutamente universal, isso que chamamos fundamento ou princípio, seja na ordem do conhecimento, seja na ordem da vida moral, evidentemente deve mudar como tudo o mais.

Philonoüs. Sem dúvida alguma.

Theonas. Mas, mudando-se os fundamentos, tudo o que sobre eles assentava desmorona? Philonoüs. É o que parece.

Theonas. Segue-se que, exigindo a constante alteração dos fundamentos e dos princípios reconhecidos no passado, a lei do Progresso exige também que o movimento da humanidade para o melhor se efetue mediante uma recorrência ininterrupta de subversões, logo, de destruições.

Philonoüs. Pois bem é fato; já que você insiste, eu concedo.

Theonas. Chamemos revolução, seguindo aqui o uso popular desse vocábulo, a toda mudança profunda por via de destruição ou de radical subversão. Diremos pois que o progresso, enquanto progresso, supondo, como atrás reconhecemos, a conservação, de alguma forma, dos ganhos adquiridos pelo passado, o progresso enquanto progresso — repito — é fundamentalmente conservador e positivo; mas o Progresso Necessário, na medida em que exprime uma pretensa lei metafisicamente necessária, é essencialmente revolucionário e negativo. A Idéia-mito do Progresso devora assim o progresso real.

Jacques Maritain (de “Theonas”)
(Tradução de Gerardo Dantas Barreto)