Mario Martins Horto do Esposo

Horto do Esposo — MARIO MARTINS
Excertos de “Introdução Histórica à Vidência do Tempo e da Morte”
DESTEMPORALIZAÇÃO
Poderíamos analisar uma multidão de obras, mas limitamo-nos ao Horto do Esposo, uma das mais significativas, pelo negativismo inicial da maioria das suas páginas, aliás compensado pela sua finalidade transcendente e positiva. E o facto de tal obra ser principalmente uma vasta rapsódia, à base de autores lidos na Idade Média, transforma-a em símbolo duma grande corrente de pensamento, para além da estreiteza individualista dum escritor que é só ele a falar e mais ninguém. O autor do Horto do Esposo é também «legião».

Dos quatro livros que constituem esta obra isolamos o último e maior, com mais de 250 páginas, em torno da fugacidade permanente do tempo, em si mesmo, e também da nossa fuga ao tempo que-é-e-não-é.

Com consciência de tal facto ou sem ela, a mundividência medieval tem a marca platônica do exílio e das sombras.

Embora afirme ou, pelo menos, suponha a concepção exacta da filosofia cristã e da teologia de que também o corpo humano é homem (e não somente a alma), embora negue, em silêncio, muitas vezes, que a alma seja, à letra, prisioneira do cárcere carnal, a verdade é que manifesta uma forte tendência para situá-la num corpo-prisão e num mundo-exílio, permanentemente ansiosa de libertação, para além do corpo, do mundo e do tempo, apesar do terror inspirado pela morte.

Não por o corpo, o mundo e o tempo serem maus, em si mesmos, mas por estarem sujeitos aos limites e à morte. Pessimismo de não-ser-ainda-mais, de preferência a pessimismo de ser, condena a negação imposta pelos limites e procura ultrapassá-la. Antes esta inadaptação cheia de ambições do que a adaptação conformista à estreiteza duma vida puramente terrenal. Por isso, sentimos simpatia profundamente humana pelo desajuste da Idade Média, que podemos classificar de claustrofobia espiritual. Dele nasce o enorme dinamismo que atira o homem para além do que é e do que possui neste mundo. Amargura? Sem dúvida. Mas fecunda.

Veremos adiante que a chamada miopia da Idade Média perante o temporal e a sub-avaliação deste implicam um desvio nem sempre prejudicial da atenção, de olhos postos na eternidade, e supõe, de certo modo, uma teoria dramática e audaz do tempo e da sua relatividade. E no tempo incluímos tudo o que passa com ele e morre nele.

Exílio dentro de nós. É verdade que Deus casou a alma com o corpo, explica o Horto do Esposo, e entre eles nasceu uma afeição profunda. Contudo, após o pecado original, a alma começou a sentir o peso do corpo amado. Gosta dele. Mas, paradoxalmente, vive nele como em carcel (Orto do Esposo, ed. por Bertil Maler, t. 1, Rio de Janeiro, 1956, PP. 87-88). Vida matrimonial tão dura que é melhor separar-se a alma da carne, dessencarreguar-se do emcarrego de tal molher. E porquê? Por existir certo desajuste nas duas linhas paralelas (alma e corpo), do que é para sempre e do que vai morrendo. E de tal desajuste nasce a impressão de encarceramento e estranheza mútua.

Por isso, os trácios alegram-se com a morte, Ca entõsaae a alma do carcer da carne e se parte delia.

Vida matrimonial infeliz, marcada pela dor, pelo medo e pelo pecado. Na verdade, Deus cria a alma e esta, lançada no corpo, macula-se no pecado original, como licor que se deita em vaso podre e sujo. Corrompem-se as forças do espírito e o homem fica inclinado a pecar.

E aqui temos o pecado original na raiz do sentimento de desterro, que amargura a alma lançada num corpo decadente e transmissor de decadência.

Prisão dentro de nós e também no mundo, pois este «he carcer dos espiritus e das almas e esterramêto muy duro ( … ), loguar de esterro e de peregrinaçõ e de door». E a palavra desterro aparece mais adiante, com o seu cortejo de amarguras: «Em este esterramêto desta vida som os homês»…. Ou então, ouvimos nomear de novo o carcer terrea em que moramos até morrer e donde partiremos para a terra dos nossos desejos, para além do corpo, do mundo e do tempo.

O mito platônico da caverna e das sombras, que o homem-prisioneiro contempla, ecoa nestas páginas, uma e muitas vezes: Fora da alma, as coisas não passam de imagens fugitivas, projectadas em espelho, ou fantasias de sonho, incapazes de saciar o coração. E quem as procura assemelha-se ao cão da fábula, que levava um queijo na boca e, ao ver, na água, a sua imagem, largou a realidade-autêntica, para buscar uma sombra.

Expulsos do Paraíso Terreal e postos entre realidades-sombras, sentimo-nos forçadamente inadaptados e alheios ao mundo e aos fantasmas que nos cercam. E, levados pelo instinto vital dos desterrados, partimos à procura da pátria-por-vir. Esta não é o paraíso perdido dos platônicos, mas, sim, o paraíso-por-achar, porque nunca lá estivemos. Para a raça humana, não se trata de regresso, mas de super-regresso — um retornar às origens, à realidade antiga (o paraíso), porém mais alta e mais autêntica, visto tratar-se do paraíso celeste e não do terrestre. Esta ideia-força domina e explica as páginas do Horto do Esposo e a sua mundividência. Partimos acompanhados pela morte e dela fugimos. Mas ela e o tempo acompanham-nos até à última hora.

O anônimo autor lança mão de expressões correntes, na Idade Média, para designar os homens que vivem na tempo, a caminho do outro mundo. Viatores (Du Cange, Glossarium, em Viatores), isto é, caminhantes, dizem os documentos em latim. E em português, peregrinos, o equivalente dos romeiros de Gonçala de Berceo:

Todos quantos vevimos que en piedes andamos,
Si quiere en preson, o en lecho iagamos,
Todos somos romeos que camino andamos:
San Peidro lo diz esto, por él vos lo provamos.

Quanto aqui vivimos, en ageno moramos;
La ficança durable suso la esperamos,
La nuestra romeria estonz la acabamos,
Quando a paraíso las almas enviamos.
(Gonzalo de Berceo, Milagros de Nuestra Señora, ed. por A. G. Solalinde (Madrid, 1958), n. 17-18)

Entremos na dicotomia dos seres. Há coisas (chamemos-lhes assim) eternas. E essas existem de verdade. As outras são como se não fossem, existem e não existem, pois estão morrendo sempre. Assemelham-se a sombras, ao lado da persistência incansável de tudo o que abrange os séculos e dura para além dos séculos.

Deste modo, vamos assistir à redução das coisas temporais a quase-sombras, à sua desrealização, quer dizer, à destruição da sua realidade, sobretudo na atenção do homem, a uma quase-aniquilação do seu valor temporal na nossa consciência.

*MAL E INEXISTÊNCIA METAFÍSICOS
*DESTEMPORALIZAÇÃO
*PARÁBOLA DO UNICÓRNIO