MARIE MADELEINE DAVY — MUNDO
Retirado do livro “O Deserto Interior” traduzido por Benôni Lemos, Ed. Paulinas
Como vai o mundo?
Olha estas coisas como homem. Marco Aurélio
No século IV, quando um eremita recebia um visitante num dos desertos do Egito ou da Palestina, perguntava-lhe logo: “Como vai o mundo?”
Pode-se facilmente imaginar a resposta: “O mundo vai mal!…” E os infortúnios do mundo desfilavam como as contas do rosário.
Ouvindo, o eremita poderia murmurar no coração: “Como fiz bem em deixar o mundo; eu poderia perder-me nele…” ou dizer: “Minha prece pelo mundo ainda não foi ouvida”.
Se, ao contrário, o visitante interrogado respondesse imprevistamente: “Alegremo-nos, o mundo vai bem, maravilhosamente bem!” o eremita, aturdido, o corpo agitado por um tremor insólito, lançaria ao seu interlocutor um olhar inquieto, pensando: “Será que está louco?”
Tranquilizado pela expressão feliz daquele que acabara de lhe dar a boa nova, ele poderia exclamar: “Se o mundo vai bem, o que estou fazendo aqui? o que estou fazendo?!” E reunindo seus trapos, isto é, “arrumando a mochila”, diria adeus ao deserto e iria embora com seu visitante.
É evidente que não convém ironizar, tanto mais que o deserto tem um valor próprio, independente da situação do mundo exterior.
As considerações insólitas que acabamos de fazer têm por objetivo lembrar a significação dada habitualmente ao mundo: ele é mau. O evangelho de João e sua 1a epístola têm, a esse respeito, um acento gnóstico nas palavras atribuídas a Jesus: “Vós sois deste mundo, eu não sou deste mundo” (Jo 8,23). “Se o mundo vos odeia, sabei que primeiro me odiou a mim” (Jo 15,18). “…Eu não rogo pelo mundo” (Jo 17,9). “Não ameis o mundo” (IJo 2,15). “Meu reino não é deste mundo” (Jo 18,36). E João disse: “O mundo inteiro está sob o poder do Maligno” (IJo 5,19). Paulo insiste: a sabedoria do mundo é louca (ICor 3,19), porque o mundo, pela sua sabedoria, não conheceu a Deus (ICor 1,21).
Essa rejeição do mundo se generalizou e se tornou um leitmotiv do pensamento cristão. Muitos autores modernos censuram veementemente o cristianismo por ter propagado e sustentado uma oposição ao mundo, a qual pode tornar os cristãos inadaptados.
O escritor E. R. Dodds, agnóstico, professor de grego na universidade de Oxford, insistiu particularmente nas analogias “entre o declínio do paganismo do século III.e o do cristianismo do século XX” (NA: E. R. Dodds, Paiens et chrétiens dans un âge d’angoisse, Ed. La Pensée sauvage (Bibl. d’ethno-psychiatrie), trad. francesa de H. D. Saffrey, 1979, p. 7.). No prefácio da edição francesa, Georges Devereux escreve: “Pagãos e cristãos passam pela mesma crise… Os dois depreciavam o mundo real, que é também o da carne e do eu; os demônios e as divindades, com os quais eles povoavam o mundo exterior e interior que criaram e tiveram depois de suportar, eram produtos das mesmas angústias e incertezas” (Id., ibid.). Assim Freud não tinha razão em responsabilizar o cristianismo pela depreciação do terrestre, com a finalidade de valorizar mais o infinito. Pagão ou cristão, o homem está sempre dividido e finalmente condenado a se voltar para si mesmo e, na melhor das hipóteses, a se tornar capaz de habitar em si mesmo.
Pagãos e cristãos se combateram asperamente. Mas seus filósofos partilhavam com os cristãos não só a aversão ao mundo, mas também a consciência da relatividade do homem exterior, do homem em si mesmo e também de suas obras. Tudo o que é perecível era maldito.
Como E. R. Dodds o mostra tão bem, citando vários autores, existe uma “oposição tradicional entre o mundo celeste e o mundo terrestre”, oposição que se tornou a base da moral. Uma moral cujo peso, aliás, carregamos ainda hoje. Donde a exploração de um tema que, durante séculos, marcou gerações e que Marco Aurélio destacou de modo particular. Para ele, a vida perceptível se aparenta com o sonho e o delírio, a obra humana não passa de “fumo e nada”, e o mundo sensível é irreal. É por isso que Platão compara os homens e as mulheres a fantoches.
As imagens propostas pelos poetas gregos se encontram nos filósofos. Plotino, fiel ao pensamento de Platão e dos estoicos, insiste na representação cênica da condição humana. Dodds cita o epigrama de Paladas:
O mundo é uma cena de teatro, e a vida é um jogo.
Vem, pois, aprende a jogar.
Renuncia à seriedade da vida, ou então prepara-te
para suportares os sofrimentos do drama
(Anthologie Palatine X, 72. Texto citado por Dodds, op. cit., p. 25.).
Esse texto do poeta pagão Paladas, que viveu no século IV, apresenta a síntese de uma teoria que teve curso por muito tempo. Pagãos e cristãos se prolongam. Filósofos, teólogos e poetas oferecem uma doutrina comum concernente à inanidade do mundo e dos homens, insistindo na extrema infelicidade da condição humana, doutrina que, em algumas épocas, ultrapassa toda medida e anuncia seu termo, porque o fim do mundo é sempre previsto como próximo. Esse é um lugar-comum cuja banalidade é proverbial. Em certas ocasiões, entretanto, essa doutrina parece significativa. Tal consideração é sustentada por Cipriano, contemporâneo de Plotino: “O mundo revela hoje o que ele é: ao mostrar seu declínio, ele anuncia a sua dissolução. Os camponeses desertam dos campos, o comércio deserta do mar, os soldados desertam do exército; a honestidade nos negócios, a justiça nos tribunais, a fidelidade na amizade, a habilidade nas artes, as regras da moral, tudo isso desaparece” (NA: Cipriano, Ad Demetrianum 3. Texto citado por E, R. Dodds, op. cit. p. 24.).
Poderíamos multiplicar as citações de textos de autores pagãos e cristãos. Eles se exprimem, tanto uns como outros, no mesmo sentido. O pensamento cristão se funde com a tradição grega; ele não se afasta dela, e até a desenvolve.
Esse pessimismo exagerado não se basta a si mesmo, mas se inscreve como um dos termos do dualismo, que nele está necessariamente implicado, e é como elemento de um todo. A máscara exige uma realidade; o mau se opõe ao bom; a insignificância do visível reclama a presença qualitativa de um invisível; o terrestre, enquanto passagem, faz apelo à eternidade.
Essa dualidade esquartejante, de procedência oriental, passou para o pensamento cristão, que, embora lutando contra o gnosticismo, foi largamente impregnado por ele.
Pode causar admiração ver autores cristãos desprezar o mundo. Não deveriam eles ser fiéis ao texto do Gênesis, no qual se diz que o Criador viu a qualidade de sua obra e exprimiu seu contentamento, dizendo que era tudo “muito bom”? (Gn 1,31)
Pessimismo da filosofia grega, dualidade das gnoses, o cristianismo foi rapidamente orientado para um impasse que o levou a situar a felicidade depois da morte física e a julgar a condição humana infeliz antes de chegar lá. Este mundo mau é governado por um príncipe, cujo nome é demônio. O demônio não é de origem grega, mas judaica, de um judaísmo tardio não canônico, que influenciou o apóstolo João, depois Paulo, e em seguida numerosos escritores.