No término de nosso primeiro esfôrço de pensamento metafísico, a realidade nos apareceu proporcionalmente unificada nesta única noção de ser que constituía nosso objeto. É-nos necessário, agora, retornar à multiplicidade que se encontrava no ponto de partida de nossa reflexão, não como o fizeram alguns idealistas, seguindo uma dialética dedutiva — da pura razão de ser nada se pode tirar a não ser ela mesma — mas por um processo de integração dos aspectos e dos elementos mais gerais do real referentes a esse primeiro dado.
Admitido esse recurso necessário à experiência para todo o progresso do pensamento metafísico, convém de início precisar de que maneira “alguma coisa” poderá vir a se acrescentar ao ser. Tomás de Aquino, em um texto clássico, nos explica claramente (De Veritate, q. 1, a. 1). O ser, nos diz, não pode ser multiplicado à maneira de um gênero através de diferenças que lhe seriam acrescidas do exterior. Só pode, portanto, ser distinguido através de modos intrínsecos contidos no ser mesmo. Ora, esta diferenciação interior do ser só pode ser efetuada de dois modos: ou os modos expressos correspondem aos modos particulares do ser e então obter-se-á a coleção do que se denomina as categorias do ser; ou os modos considerados convirão de maneira universal e necessária a todo ser:
“…enti non potest addi aliquid quasi extranea natura, per modum quo differentia additur generi, vel accidens subjecto; quia quaelibet natura essentialiter est ens. Unde etiam probat philosophus in III Metaphysicae quod ens non potest esse genus; sed secundum hoc aliqua dicuntur addere supra ens, inquantum exprimunt ipsius modus, qui nomine ipsius entis non exprimitur. Quod dupliciter contingit: uno modo ut modos expressus sit aliquis specialis modus entis, secundum quos accipiuntur diversi modi essendi; et juxta hos modos accipiuntur diversa rerum genera. Alio modo i-ta quod modus expressus sit modos generaliter consequens omne ens.”
Estes “modos que fazem, de maneira geral, sequência a todo ser” e nos quais iremos inicialmente nos deter, constituem o que se chama comumente as propriedades transcendentais do ser. Observar-se-á, em seguida, que o termo propriedade deve ser tomado aqui em um sentido lato, não como exprimindo uma entidade estranha à essência de uma realidade dada, o que é impossível no caso do ser, mas como designando esta essência mesma sob um aspecto particular. Transcendental, por sua vez, tem o sentido que possui para o ser: o transcendental é o que se encontra em todos os gêneros do ser. Para exprimir esta generalidade diz-se que esses modos são convertíveis com o ser, isto é, que se pode indiferentemente, nas proposições em que tomam lugar, tomar o ser ou um dos seus modos como sujeito ou como predicado. Assim, diz-se, “o ser é uno”, “o uno é o ser”.
Formação da coleção dos transcendentais.
A despeito do ordenamento aparentemente simples e regular que pode revestir atualmente nos manuais, a teoria filosófica dos transcendentais, ser, uno, vero, bem, efetivamente só se constitui através de sucessivas contribuições e seguindo um processo assaz complexo.
A ideia do que pode ser uma noção transcendental foi exatamente definida por Aristóteles para o caso do uno, do qual assinalou perfeitamente a identidade fundamental e a convertibilidade com o ser (Cf. sobretudo Metafísica, L. IV, c. 2). Contudo, Aristóteles não se preocupou, em metafísica, em confrontar, sob este aspecto de propriedade geral, o bem com o ser; o bem se encontra efetivamente, para ele, no princípio de toda a ordem da ação, mas a adequação com o plano de ser não é explicitamente realizada. Quanto ao vero, ou ao ser como vero, em sua filosofia somente são considerados sob o aspecto subjetivo de termo perfectivo do conhecimento, e se veem mesmo, a este título, eliminados do objeto da filosofia.
A constituição do conjunto, que se tornará clássico, dos três transcendentais, uno, vero, bem, reportados ao ser, somente se dará de fato na filosofia cristã, onde terá também inicialmente uma significação teológica. Uno, vero, bem, aparecerão então como atributos do Ser primeiro que se reportará a cada uma das três Pessoas da Trindade e dos quais se procurarão os vestígios ou os signos nas criaturas. As Sumas ou os Comentários sobre as Sentenças do início do século XIII são os testemunhos deste primeiro estado da doutrina dos transcendentais. Sua elaboração filosófica e sua fixação , definitiva parecem bem ser a obra própria de Tomás de Aquino. O texto essencial sobre esta questão é o do De Veritate (q. I, a. I), do qual já começamos a exposição e ao qual convém retornar.
Nossas diversas concepções, já foi dito, apenas podem se formar por adição à noção fundamental de ser, seja porque constituam modos particulares de tal noção, categorias, seja porque a ela se reportem a título de propriedades absolutamente gerais. No último caso, que é o nosso presentemente, a “modificação” do ser pode se produzir ainda de dois modos diferentes. Se o ser é afetado em si mesmo, obtemos duas primeiras noções transcendentais, na medida em que dele se exprime algo afirmativamente ou negativamente. Afirmativamente não podemos atribuir ao ser senão a sua essência, à qual então corresponde o termo res, coisa. Negativamente apenas se pode significar a indivisão do ser, à qual corresponde o termo unum, uno. Se consideramos agora o ser na sua relação com os outros, ou nos colocaremos no ponto de vista de sua distinção relativamente a eles, e o ser nos aparecerá então como aliquid, isto é, como algo de outro; ou procurando o que em um outro pode convir universalmente a todo ser, o reportaremos à alma humana que, através de seus poderes de conhecimento e apetição, é a única a possuir esta amplitude. Em relação aos poderes do conhecimento, a conveniência do ser será expressa pelo termo verum, vero; em relação aos poderes de apetição, pelo de bonum, bem. Eis na íntegra esse texto importante:
“Et hic modus (generaliter consequens omne ens) dupliciter accipi potest: uno modo secundum quod consequitur omne ens in se; alio modo secundum quod consequitur omne ens in ordine ad aliud. Si primo modo, hoc dicitur quia exprimit in ente aliquid affirmative vel negative. Non autem invenitur aliquid affirmative dictum absolute quo possit accipi in omni ente, nisi essentia eius secundam quod esse dicitur; et sic imponitur hoc nomen res, quod secundum hoc differt ab ente, secundum Avicennam in principio Metaphysicae, quod ens sumitur ab actu essendi, sed nomen rei exprimit quidditatem sive essentia entis. Negatio autem quae est consequens omnem ens absolute et indivisio; et hanc exprimit hoc nomen unum: nihil enfim est aliud unum quam ens indivisum. Si autem modus entis accipiatur secundo modo, scilicet secundum ordinem unius ad alterum, hoc potest esse dupliciter. Uno modo secundum divisionem unius ab altero; et hoc exprimit hoc nomen aliquid; dicitur enim aliquid quasi aliud quid; unde sicut ens dicitur unum, in quantum est indivisum in se; ita dicitur aliquid in quantum est ab aliis divisum. Alio modo secundum convenientiam unius entis ad aliud; et hoc quidem non potest esse nisi accipiatur aliquid quod notum sit convenire cum omni ente. Hoc autem est anima, quae quodammodo est omnia, sicut dicitur in IIIº De Anima. In anima autem est vis cognoscitiva et appetitiva. Convenientiam ergo entis ad appetitum exprimit hoc nomem bonum… convenientiam vero entis ad intellectum exprimit hoc nomen verum.”
Neste texto, ao lado da noção primeira de ser, Tomás de Aquino enumera cinco noções transcendentais: res, anum, aliquid, verum, bonum. Com o termo res, que exprime o aspecto essência das coisas, parece-se ainda não sair da significação explícita do ser; alguns não consideram esse termo como uma verdadeira propriedade transcendental. O aliquid possui uma significação anfibológica: ou marca a oposição de um ser com um outro ser e então pode ser considerado como sequência da unidade; ou sublinha a oposição do ser ao não-ser — o ser é outra coisa que o não-ser — e sob este aspecto manifesta bem um aspecto original e primeiro do ser. Resta, pois, que, mesmo que lhes seja reconhecido o título e o valor de propriedades transcendentais do ser, res e aliquid não têm um interesse filosófico tão grande quanto a trilogia, uno, vero, bem, que merece permanecer clássica. Os modernos se comprazem em acrescentar a estes o belo, pulchrum, que parece, com efeito, significar um aspecto absolutamente geral do ser; mas, como somente assinala a conveniência do ser à alma por intermédio das potências conjugadas de conhecimento e de apetição, deve, assim, ser considerado como um transcendental derivado.
Natureza das noções transcendentais.
Tanto a propósito do uno (Metafísica, IV, 1, 2), como do vero (De Veritate, q. 1, a. 1), e como do bem (De Veritate, q. 21, a. 1), Tomás de Aquino manifesta, de início, a preocupação de afirmar a unidade fundamental dos transcendentais com o ser: o uno e o ser, por exemplo, não significam diversas naturezas, mas uma só e mesma natureza, unum autem et ens non diversas naturas sed unam significant. Os transcendentais não constituem, portanto, naturezas verdadeiramente distintas. Entretanto, é bem evidente que esta unidade fundamental (in re) do ser e dos transcendentais não se apresenta sem uma certa diversificação nocional: não se diz tautologicamente “ser uno” ou “ser bom”; o segundo termo de cada um destes binômios acrescenta incontestavelmente algo ao primeiro. Não podendo ser, devido à identidade reconhecida, da ordem da’ distinção real, essa diferença só poderá ser da ordem da distinção de razão, isto é, no caso do uno, uma negação, e no caso do vero e do bem, uma relação.
“Sic ergo supra ens quod est prima conceptio intellectus unum addit id quod est rationis tantum, scilicet negationem; dicitur enim unum quasi ens indivisum; sed verum et bonum positive dicuntur; unde non possunt addere nisi relationem quae sit rationis tantum.” (De Veritate, q. 21, a. 1).
De que distinção de razão se trata aqui? Uma distinção é dita real na medida em que é independente de nosso conhecimento, ou na medida em que se dirige a elementos do real do qual um não é efetivamente o outro. Uma distinção é dita de razão ou lógica, quando se refere formalmente a elementos que são diversos somente em razão da intervenção da inteligência. A distinção de razão pode também possuir um fundamento na realidade (distinção de razão raciocinada) ou não possuir algum, isto é, corresponder a um puro artifício de pensamento (distinção de razão raciocinante). A distinção dos transcendentais que não é real, sendo contudo corretamente fundada, não pode ser senão uma distinção de razão raciocinada. Mas aqui ainda, encontramo-nos em face de duas hipóteses: ou um dos conceitos contém os outros somente em potência (gênero e espécie), tendo-se então uma distinção de razão raciocinada perfeita ou maior; ou o conceito pode também conter os outros virtualmente em ato (análogo e analogados, ser e propriedades transcendentais) e encontramos o nosso caso, que é, portanto, o da distinção de razão raciocinada imperfeita, ou menor.
Outra precisão: dever-se-á tomar cuidado em não confundir os transcendentais tais como o vero e o bem com as relações que supõem. Os transcendentais implicam, com efeito, esta relação, mas não se identificam com ela; fundamentalmente designam o ser, na medida em que este se refere às potências cognoscitivas e apetitivas, isto é, enquanto está determinado por estas relações. É, portanto, sempre a mesma realidade do ser que significamos através de cada um dos transcendentais, mas na medida em que nela se fundam as ordens do conhecimento e da apetição. (Gardeil)