Hermetismo

São conhecidas as muitas influências, em parte árabes, exercidas durante a Idade Média pelas ideias de poderes do mundo ou de “inteligências” (entendidas por uns como pensamentos de Deus, por outros, como anjos) na filosofia cristã da natureza; mas é conhecida sobretudo a preocupação que, continuando esse gênero de especulação, tiveram os melhores espíritos da Renascença de transpor novamente para o domínio cristão a cabala mágica e mística dos judeus. Notou-se, nessa época, que um bom número de Padres da Igreja tinham arranjado para o misterioso Hermes Trismegisto um lugar de honra entre os profetas e os sábios pagãos, e que livros herméticos tinham circulado desde o começo da Idade Média até a baixa Idade Média. A Renascença, por seu lado, celebra em Hermes Trismegisto o grande contemporâneo de Moisés e o ancestral da sabedoria grega (lembremos a sua venerável figura incrustada no pavimento da catedral de Sena). Se, por meio dele e de outros pensadores pagãos, os poetas, os artistas e os teólogos, com um entusiasmo respeitoso, fazem voltar para seu foco cristão os raios dispersos da luz divina, muito mais peso tem o outro repatriamento, o da cabala, cuja tradição oral secreta é feita remontar aos tempos de Moisés. As primeiras discussões defendendo ou contestando as doutrinas esotéricas da cabala são atribuídas aos judeus espanhóis do século XII, convertidos ou não; três séculos mais tarde foi tentado o contato com ela por Reuchlin, na Alemanha, por Ficino e principalmente por Pico della Mirandola; e o surpreendente cardeal Egídio de Viterbo (1469-1555) procurou usar a cabala na exegese da Sagrada Escritura, non peregrina, sed domestica methodo, “empregando um método que não lhe é estranho, mas de acordo com o seu espírito”. Por ordem de Clemente VII, esse príncipe da Igreja redigiu seu turbulento tratado da Shekinah, dedicado a Carlos V. Seria fácil citar, além desses poucos nomes célebres, uma multidão de precursores e imitadores de menor envergadura; o que importa aqui é que essa penetração do esoterismo pagão e judaico correspondia inegavelmente ao espírito do humanismo, que esperava insuflar uma vida nova na teologia cristã estagnada, reunindo assim raios dispersos da revelação, sem duvidar, um só instante, da possibilidade de reunir todos esses elementos contrastantes na cristã autêntica. Pico della Mirandola, de modo particular, afirmou claramente que não procurava nenhum sincretismo: “Trago em minha fronte o nome de Jesus, e morrerei com alegria pela te que tenho nele. Não sou mágico, nem judeu, nem ismaelita, nem herege; é a Jesus que rendo culto, é a sua cruz que trago em meu corpo”. Também nosso autor subscreveria essa afirmação.

De modo análogo, houve outras “repatriações” notáveis de sabedoria hermética e cabalística para o pensamento bíblico e cristão como, de modo especial, as transposições, feitas por Martin Buber, do hassidismo, que era profundamente marcado pela cabala, para o nível da percepção moderna, e a transformação, de um vigor igualmente tão criativo, operada pelo filósofo Franz von Baader, incorporando a cristosofia de Jacob Boehme à concepção católica do mundo. Mencionaremos ainda, brevemente, uma terceira transposição, menos clara, porém, a saber, a da alquimia e a da magia antigas para as esferas da psicologia das profundezas, feita por C. G. Jung. Quanto às presentes meditações, elas vão todas no mesmo sentido que as grandes contribuições de Pico della Mirandola e Baader, apesar de não decorrerem delas diretamente. Os afluentes místicos, mágicos e ocultos que alimentam o rio de suas reflexões são bastante variados, mas isso não impede que essas águas, misturando-se, cheguem a uma contemplação cristã multiforme, mas unida em seu fundo. (Hans Urs von Balthasar)