Sentidos da Escritura

ESCRITURASHERMENÊUTICASENTIDOS DA ESCRITURA

VIDE: Interpretação, Exegese, Sentido Oculto

Máximo o Confessor: Ambiguum 37

Em Ambiguum 37, Máximo empreende a análise científica de dez modos progressivos (tropoi) através dos quais o sentido espiritual das coisas (pragmata) na Escritura deve ser discernido, começando com as cinco categorias básicas de “lugar” (tropos), “tempo” (chronos), “raça” (genos), “persona individual” (prosopon), e “dignidade” (axia) ou “ocupação” (epitedeuma).

Ananda Coomaraswamy [AKCMeta]

Na Summa Theologica (Tomás de Aquino) I.q.10, a.5, Santo Tomás de Aquino menciona “estados de existência” no plural deliberadamente (cf. Les États multiples de l’Être, de René Guenon, 1932), se bem que para fins de generalização tenha sido necessário falar apenas em três, que são o humano, o angélico e o divino, isto é, os estados aos quais pertencem respectivamente a compreensão literal, a metafórica e a analógica.

François Chenique [YSFA]

A Escritura inspirada pelo Espírito Santo tem, tradicionalmente, quatro sentidos1 :

— O sentido histórico ou literal é o que reconstitui os acontecimentos de que fala o texto ou que simplesmente explica o sentido das palavras.

— O sentido alegórico ou espiritual é, positivamente, um sentido dogmático, porque busca no Antigo Testamento a imagem do Novo, e descobre que um e outro significam a Igreja e seu devenir.

— O sentido anagógico ou místico tem um valor escatológico, porque busca o que a Escritura nos diz sobre o fim dos tempos e sobre os mistérios do além.

— O sentido tropológico ou moral, que tem por objetivo as realidades da vida moral, e sobretudo as da vida espiritual.

Nesses dois últimos sentidos, a Escritura, tal como o simbolismo litúrgico, torna-se um modo de exploração e um método de investigação do universo interior, além de um meio de expressão e um método de ensino capaz de obter a “aprovação” de outrem quanto ao sentido profundo das realidades espirituais, despertando nele as mesmas experiências que foram vividas pelos escritores inspirados e pelos grandes mestres da vida espiritual2.

É conveniente, pois, meditar sobre a Escritura nesses quatro sentidos, com o auxílio dos comentários tradicionais, se isso for necessário. Aliás, contam menos as palavras do que as coisas, em uma “lógica de participação”3, e em um simbolismo realmente vivido. A escritura torna-se, então, o sacramento do Verbo de Deus, tão necessário para o alimento da alma como o sacramento do Corpo de Cristo4.


  1. A questão do sentido da Escritura despertou numerosas discussões entre os exegetas. Seguimos, aqui, a exposição de Jean Chatillon, em seu prefácio para os Sermons et opuscules spirituels inédits de Richard de Saint-Victor, São Boaventura, no Itinerarium, parece inverter o sentido anagógico e tropológico (IV, 6); v. o comentário de H. Duméry (trad. p. 79), fazendo notar que “tropologia” significa “figura” (em latim) e que “tropos” (em grego) significa “conduta”, “costumes”: o sentido tropológico “encaixa” essas duas etimologias. Os exegetas modernos estão muito pouco de acordo com essa visão tradicional das coisas; v. a longa dissertação (cap. 9) de Dom Charlier, em Lecture chrétienne de la Bible. V., também, os artigos “Allégorie” e “Anagogique” do Vocabulaire de la philosophie de Lalande; os quatro sentidos ali estão resumidos segundo Hugues de Saint-Victor: Littera gesta docet, quid credas Allegoria, Moralis quid agas, quo tendas Anagogia. Observemos, com J. Chatillon (op. cit., p. XLVIII), que se trata, no sentido moral ou tropológico, não somente da vida moral no sentido moderno da palavra, mas da conduta a observar em todo o curso da vida espiritual.  

  2. “Evitando, desde então e ao mesmo tempo, o que uma literatura de confissões pode ter de desagradável, o que uma psicanálise imprudente e, aliás, muitas vezes destituída de poder, pode ter de perigosa, ao que uma fenomenologia puramente descritiva, mutilada de toda a metafísica e de toda referência ao absoluto e ao sagrado tem, necessariamente, de incompleto, e mesmo do que uma psicologia e uma antropologia estritamente conceituais e objetivas têm de dessecante e de insatisfatório, Ricardo de S. Victor encontrou no simbolismo bíblico e litúrgico, isto é, na tropologia, esse método de investigação interior e esses meios de expressão que ele não podia dispensar, e dos quais muitos outros, finalmente, tinham usado antes dele.” J. Chatillon. Op. cit., p. XLVIII. 

  3. Ao lado da lógica da identidade e da não contradição, a lógica de participação admite que uma coisa pode ser, ao mesmo tempo, aquilo que é, e também uma outra coisa; as correspondências e as analogias que essa lógica reconhece são o fundamento metafísico do simbolismo (v. os comentários de J. Chatillon, op. cit., p. XLVI e XLIX.
    Tal lógica parece exigir que compreensão e extensão sejam diretamente proporcionais, como no universo vedantino de Samkara, ao invés de serem inversamente proporcionais, como na lógica clássica do Ocidente. V. O. Lacombe. L’Absolu selon le Vêdânta, p. 61. Recordemos que a noção de extensão dos conceitos só é válida no mundo submetido à quantidade; v. R. Guénon. Les États multiples de l’Être. cap. V, nota da página 47; e nosso Eléments de logique classique, notas das páginas 341 e 342. 

  4. “Terei também os livros santos para me consolar e me instruir, e, acima de tudo, vosso Corpo sagrado como remédio e refúgio. Porque sinto que duas coisas me são grandemente necessárias, aqui, e que, sem elas, eu não poderia suportar o peso desta miserável vida. .. Não poderia viver, sem essas duas coisas, porque a palavra de Deus é a luz da alma, e vosso Sacramento é o pão da vida.” Imitation de Jésus-Christ. liv. IV, cap. XI.