Revelação de Deus

Michel Henry: ENCARNAÇÃO (MHE)

O Verbo de Deus — segundo a teologia, mas talvez também para uma reflexão filosófica suficientemente perspicaz — não é senão a revelação de Deus ou, para dizê-lo com todo o rigor, sua autorrevelação. Nesse caso, a essência do Verbo não seria nada muito oposto à carne percebida, ela mesma e em si mesma, como revelação: uma afinidade secreta as reuniría, ao contrário, na medida em que um mesmo poder, o de tornar manifesto, habitasse em ambos. A afirmação crucial enunciada na palavra de João seria menos paradoxal do que parece. A obra do Verbo, a de cumprir a revelação de Deus, prosseguiria de algum modo no interior da carne em vez de se chocar com ela como com um termo opaco e estranho. [28]

Refletindo sobre essa última interrogação, vemos que ela é suscetível de receber dois significados. Ou o Verbo tomou carne para se revelar aos homens, caso em que a revelação é efetivamente obra da carne, e é a esta que ela é confiada. Ou a revelação de Deus em seu Verbo é o fato do próprio Verbo. Quer dizer, então, que esse Verbo precisa pedir à carne um poder que lhe pertence propriamente, uma revelação que ele já cumpriu em e por si mesmo?

Resta uma terceira hipótese. Seria ao Verbo, ao Verbo que ela traz em si, que a carne deveria o ser sua revelação. E isso porque, tendo tomado carne nela, seria ele que, nela, cumpriria a obra de uma revelação que é a sua e à qual a própria carne deveria seu poder de revelação.

A primeira hipótese aflora mais de uma vez nos Padres. Trate-se de Tertuliano, de Atanásio, de Orígenes — e até, embora em raras vezes, de Irineu –, a vinda do Verbo numa carne humana é interpretada como a maneira como o Verbo invisível se mostra aos homens fazendo-se ver por eles na forma de um corpo objetivo como o deles. O Verbo tornar-se visível num corpo visível — esse seria o princípio de sua revelação. Logo indicaremos a estranha construção a que semelhante concepção conduzirá Atanásio e como este se esforçará por fundar a intuição do Verbo invisível no aparecimento exterior de seu corpo e de seus comportamentos.

Como não assinalar, todavia, que essa tese do tornar-se visível do Verbo no corpo visível que ele assumiu e de que se revestiu — tese que é evidente e define, cremos, a do cristianismo — esbarra em duas dificuldades maciças? A primeira é que, se o verbo de Deus assumiu, para se mostrar aos homens, um corpo com a mesma aparência que o corpo deles, o que se mostraria a eles com essa aparência ainda não seria, com efeito, senão um corpo semelhante ao deles, e nada nele permitiría saber que não era precisamente o corpo de um homem comum, mas o do Verbo. Se, pois, o verbo vem habitar entre os homens com o aspecto de tal corpo, seu périplo na Terra se desenrolará num anonimato insuperável. Do ponto de vista teológico, a dificuldade [29] formula-se diferentemente, mas relaciona-se à mesma aporia consignada desde o início de nossa démarche: a de uma salvação consistente na união a um corpo mortal. Mas como essa união a um corpo perecível encerraria uma promessa de imortalidade? Como a ressurreição dos corpos proviría de uma união desse gênero, análoga, afinal, à que se estabelece entre dois corpos humanos, à fusão amorosa do homem e da mulher, por exemplo? É precisamente essa banalização de Cristo vindo sob o aspecto de um homem qualquer que Atanásio se esforçará por superar servindo-se dela como de um contraponto destinado a sublinhar, por contraste, o caráter extraordinário de seus feitos e gestos. Com efeito, quanto mais modesto, mais humilde, mais anônimo aparecerá o homem Jesus, mais essa aparência será a de um ser humano sem distinção social ou honorífica de espécie alguma, estranha a toda e qualquer “glória humana”, e mais suas palavras, que nenhum homem nunca pronunciou, mais seus atos, que nenhum homem jamais realizou, mostrarão de modo evidente que ele não é um homem como os outros, mas o Messias enviado por Deus para salvar a todos.

A segunda dificuldade, mais radical ainda, surge da própria palavra de João. Pois João não diz que o Verbo tomou um corpo, que assumiu seu aspecto: diz que ele “se fez carne”. Por um lado, trata-se de carne e não de corpo, e, se a diferença entre carne e corpo nos pareceu desde o início essencial, é a carne, e não o corpo, que deve servir de fio condutor para a inteligência da Encarnação no sentido cristão — mas também, sem dúvida, de todo ser encarnado. Por outro lado, João tampouco diz que o Verbo assumiu o “aspecto” dessa carne, mas precisamente que ele “se fez carne”. Seria perfeitamente possível, aliás, que se trate apenas de um corpo de que se possa assumir a forma ou o aspecto, ao passo que, no concernente à carne ou, para falar de maneira mais rigorosa, à vinda nela que é a encarnação — toda e qualquer encarnação –, só conviria o “fazer-se” no sentido do “fazer-se carne” joanino. Pois já não se trata então de “forma”, de “aspecto”, de “aparência”, mas de realidade. É em [30] si mesmo, em sua essência e em sua realidade de Verbo, enquanto Verbo, que o Verbo se faz carne.


A essa correlação até então impensada da carne e de uma Arquirrevelação estranha ao mundo (de maneira que — longe de ser reduzida a um corpo cego que não pode ser esclarecido senão do exterior por essa luz do mundo que jamais penetra nele e lhe é, ademais, indiferente — a carne, semelhante ao fogo, se inflama como substância de sua própria revelação) junta-se — nos Padres e, antes deles, nas palavras e nos textos iniciáticos — uma correlação mais decisiva ainda que não concerne somente a toda encarnação e a toda carne, mas precisamente a esse acontecimento sem medida que é [375] a Encarnação cristã. Desde que ela se produziu, esta sempre foi vivida pelos cristãos como a Revelação de Deus mesmo. Como é preciso, portanto, compreender, em última instância, essa Revelação própria da Encarnação do Verbo em Cristo?