Hermetismo Cristão

Hermetismo Cristão

Nada melhor para uma compreensão desta expressão, ou daquela preferida por Frances Yates, “Hermetismo Religioso”, do que ler este excerto da apresentação do teólogo Hans Urs von Balthasar ao livro “Meditações sobre os 22 Arcanos Maiores do Tarô”. Em seguida apresentaremos excertos de outros livros que esclareçam esta temática, assim como de obras “anônimas” ou não de hermetistas cristãos.

Um pensador e orante cristão, cuja pureza força à admiração, apresenta-se diante de nós, inspirando-se nas ciências cabalísticas e em alguns elementos da alquimia e da astrologia, símbolos do hermetismo cristão em seus diferentes níveis — mística, gnose e magia — símbolos esses reunidos nos chamados vinte e dois “grandes arcanos” do jogo de taro, e, por suas meditações, procura reconduzir à sabedoria mais profunda, porque universal, do mistério católico.

Lembremos, em primeiro lugar, que essa tentativa não se encontra isolada na história do pensamento católico, teológico e filosófico. De modo geral, os Padres da Igreja interpretavam os mitos nascidos do pensamento e da imaginação pagãos como vagos pressentimentos do logos plenamente revelado em Jesus (demonstração essa que foi retomada de maneira monumental por Schelling em sua última filosofia). Em particular, Orígenes, indo até o fim nesse caminho, empenhou-se em sua ação de cristão, em levar para a clareza da revelação bíblica não só a sabedoria filosófica dos pagãos como também a “sabedoria dos príncipes deste mundo” (I Cor 2,6), pela qual ele entendia “algo como a pretensa filosofia secreta dos egípcios” (fazendo alusão aos escritos herméticos atribuídos a “Hermes Trismegisto” = Tot, divindade egípcia), “a astrologia dos caldeus e dos hindus… que prometem ensinar a ciência das coisas supraterrestres” e também “as múltiplas doutrinas dos gregos sobre a natureza do divino”. Ele considerava possível que os poderes do mundo não ensinem sua sabedoria “aos homens… para os lesar, mas porque eles mesmos acreditam na verdade dessas coisas”. Ideias semelhantes encontram-se na Praeparatio evangélica de Eusébio de Cesaréia.

São conhecidas as muitas influências, em parte árabes, exercidas durante a Idade Média pelas ideias de poderes do mundo ou de “inteligências” (entendidas por uns como pensamentos de Deus, por outros, como anjos) na filosofia cristã da natureza; mas é conhecida sobretudo a preocupação que, continuando esse gênero de especulação, tiveram os melhores espíritos da Renascença de transpor novamente para o domínio cristão a cabala mágica e mística dos judeus. Notou-se, nessa época, que um bom número de Padres da Igreja tinham arranjado para o misterioso Hermes Trismegisto um lugar de honra entre os profetas e os sábios pagãos, e que livros herméticos tinham circulado desde o começo da Idade Média até a baixa Idade Média. A Renascença, por seu lado, celebra em Hermes Trismegisto o grande contemporâneo de Moisés e o ancestral da sabedoria grega (lembremos a sua venerável figura incrustada no pavimento da catedral de Sena). Se, por meio dele e de outros pensadores pagãos, os poetas, os artistas e os teólogos, com um entusiasmo respeitoso, fazem voltar para seu foco cristão os raios dispersos da luz divina, muito mais peso tem o outro repatriamento, o da cabala, cuja tradição oral secreta é feita remontar aos tempos de Moisés. As primeiras discussões defendendo ou contestando as doutrinas esotéricas da cabala são atribuídas aos judeus espanhóis do século XII, convertidos ou não; três séculos mais tarde foi tentado o contato com ela por Reuchlin, na Alemanha, por Marsilio Ficino e principalmente por Pico della Mirandola; e o surpreendente cardeal Egídio de Viterbo (1469-1555) procurou usar a cabala na exegese da Sagrada Escritura, non peregrina, sed domestica methodo, “empregando um método que não lhe é estranho, mas de acordo com o seu espírito”. Por ordem de Clemente VII, esse príncipe da Igreja redigiu seu turbulento tratado da Schechina, dedicado a Carlos V. Seria fácil citar, além desses poucos nomes célebres, uma multidão de precursores e imitadores de menor envergadura; o que importa aqui é que essa penetração do esoterismo pagão e judaico correspondia inegavelmente ao espírito do humanismo, que esperava insuflar uma vida nova na teologia cristã estagnada, reunindo assim raios dispersos da revelação, sem duvidar, um só instante, da possibilidade de reunir todos esses elementos contrastantes na cristã autêntica. Pico della Mirandola, de modo particular, afirmou claramente que não procurava nenhum sincretismo: “Trago em minha fronte o nome de Jesus, e morrerei com alegria pela que tenho nele. Não sou mágico, nem judeu, nem ismaelita, nem herege; é a Jesus que rendo culto, é a sua cruz que trago em meu corpo”. Também nosso autor subscreveria essa afirmação.

De modo análogo, houve outras “repatriações” notáveis de sabedoria hermética e cabalística para o pensamento bíblico e cristão como, de modo especial, as transposições, feitas por Martin Buber, do hassidismo, que era profundamente marcado pela cabala, para o nível da percepção moderna, e a transformação, de um vigor igualmente tão criativo, operada pelo filósofo Franz von Baader, incorporando a cristosofia de Jacob Boehme à concepção católica do mundo. Mencionaremos ainda, brevemente, uma terceira transposição, menos clara, porém, a saber, a da alquimia e a da magia antigas para as esferas da psicologia das profundezas, feita por C. G. Jung. Quanto às presentes meditações, elas vão todas no mesmo sentido que as grandes contribuições de Pico della Mirandola e Baader, apesar de não decorrerem delas diretamente. Os afluentes místicos, mágicos e ocultos que alimentam o rio de suas reflexões são bastante variados, mas isso não impede que essas águas, misturando-se, cheguem a uma contemplação cristã multiforme, mas unida em seu fundo.


DESTAQUES
*Mistério da Cruz
*Meditações Tarô