HANS JONAS — A RELIGIÃO GNÓSTICA
THE ALIEN (das Fremde) — O ESTRANHO/ESTRANGEIRO
“Em nome da primeira grande Vida estrangeira dos mundos de luz, o sublime que se assenta acima de todas as obras”: esta é a abertura padrão das composições mandeanas, e “estrangeira” é um constante atributo da “Vida” que por sua natureza é estrangeira (estranha) a este mundo e sob certas condições estrangeira dentro dele. A fórmula citada fala da “primeira” Vida “que se assenta acima de todas as obras”, onde temos que suplementar “da criação”, i.e., acima do mundo. O conceito de Vida estrangeira é um dos mais impressionantes símbolos do mundo que encontramos na fala gnóstica, e é novo na história do discurso humano em geral. Tem equivalentes através da literatura gnóstica, por exemplo o conceito de Marcion do “Deus estrangeiro” ou apenas “o Estrangeiro”, “o Outro”, “o Desconhecido”, “o Inominável”, “o Oculto” (Deus Absconditus); ou o “Pai desconhecido” em muitos escritos gnósticos-cristãos. Seu contraponto filosófico é a “transcendência absoluta” do pensamento Neoplatônico. Mas mesmo aparte destes usos teológicos onde é um dos predicados de Deus ou do Ser supremo, o termo “estrangeiro” (e seus equivalentes) tem sua significação simbólica como uma expressão de uma experiência humana elementar, e isto subscreve os diferentes usos do termo em contextos mais teóricos. De acordo com esta experiência básica, a composição “a vida estrangeira” é particularmente instrutiva.
O estrangeiro é aquele que tem origem em outro lugar e aqui não pertence. Para aqueles que aqui pertencem é assim o estranho, o não familiar e o incompreensível; mas o mundo deste últimos, por seu lado, é tão incompreensível ao estrangeiro que aqui vem habitar, é como uma terra estranha que está longe de seu lar. Assim o estrangeiro sofre seu fado: só, desprotegido, incompreendido, e sem compreensão em uma situação cheia de perigo. A angústia e a saudade são parte do fado do estrangeiro. O estrangeiro que não conhece os modos da terra estrangeira, vaga perdido; se muito bem aprende seus modos, esquece que é um estrangeiro e se perde (em um sentido diferente) sucumbindo à sedução do mundo estrangeiro e tornando-se estranho a sua própria origem. Então se tornou um “filho da casa”. Isto também é parte do destino do estrangeiro. Na sua alienação de si mesmo o perigo passou, mas este mesmo fato é o ápice da tragédia do estrangeiro. A relembrança de sua própria estranheza, o reconhecimento de seu lugar de exílio pelo que é, é o primeiro passo de retorno; a saudade despertada é o começo do retorno. Tudo isto pertence ao lado de “sofrimento” da condição de estrangeiro. No entanto, ao mesmo tempo, com relação a sua origem está em uma condição de excelência, uma fonte de poder e de uma vida secreta desconhecida ao ambiente e em última instância impregnável pelo ambiente, assim como incompreensível para as criaturas de seu mundo. Esta superioridade do estrangeiro que o distingue mesmo aqui, embora secretamente, é sua glória manifesta em seu próprio reino nativo, que é fora deste mundo. Em tal posição o estrangeiro é o remoto, o inacessível e sua estranheza significa majestade. Assim o estrangeiro tomado de modo absoluto é totalmente transcendente, o “além” e um eminente atributo de Deus.
Ambos os lados da ideia do “Estrangeiro”, o positivo e o negativo, estrangeirice como superioridade e como sofrimento, como a prerrogativa de distanciamento e como o destino do envolvimento, alternam como características do único e mesmo tema — A “Vida”. Como a “grande primeira Vida” compartilha no aspecto positivo apenas: é o “além”, “acima do mundo”, “nos mundos de luz”, “nos frutos de esplendor, nas cortes de luz, na casa da perfeição”, e assim por diante. Em sua existência retirada no mundo tragicamente compartilha na interpenetração de ambos os lados; e a atualização de de todas estas características alinhadas acima, em uma sucessão dramática que é governada pelo tema da salvação, constitui a história metafísica da luz exilada da Luz, da vida exilada da Vida e envolvida no mundo — a história da alienação e recuperação, seu caminho para baixo e através do mundo inferior e para cima de novo. De acordo com os vários estágios desta história, o termo “estrangeiro” ou seus equivalentes podem entrar em múltiplas combinações: “minha alma estrangeira”, “meu coração doente de mundo”, “a vinha solitária”, aplicam-se à condição humana, enquanto o “homem estrangeiro” e “o estrangeiro” aplicam-se ao mensageiro do mundo da Luz — embora possa aplicar a ele mesmo os termos anteriores também, como veremos ao tratar do “redentor redimido”. Assim por implicação o próprio conceito de “estrangeiro” inclui em seu significado todos os aspectos que o “caminho” explicita na forma de fases temporalmente distintas. Ao mesmo tempo expressa principalmente a experiência básica que primeiro levou a esta concepção do “caminho” da existência — a experiência elementar de estrangeirice e transcendência. Podemos assim ver a figura da “Vida estrangeira” como um símbolo primário do Gnosticismo.
O “Homem Estrangeiro”
A chamada é expressa por aquele que foi enviado ao mundo para esta finalidade e em cuja pessoa a Vida transcendente uma vez mais toma sobre si o destino do estrangeiro: ele é o Mensageiro ou o Enviado — em relação ao mundo, o Homem Estrangeiro.
O nome “o estrangeiro” indica os tipos de recepção ele encontra aqui em baixo: a exultação bem-vinda daqueles que se sentem estrangeiros e exilados aqui; a chocada surpresa dos poderes cósmicos que não compreendem o que está acontecendo no meio deles; finalmente, o agrupamento hostil dos filhos da casa contra o intruso. O efeito imediato desta aparição aqui em baixo é descrita com força no Evangelho da Verdade.
Assim, para reencontrar seus próprios, a Vida em um de seus membros decaídos uma vez mais submete-se a descer no calabouço do mundo, “vestir-se a si mesma na aflição dos mundos” e assumir o lote do exílio distante do reino da luz. Isto podemos chamar a segunda descida do divino, tão distinta da trágica anterior que conduziu à situação que agora deve ser redimida. Enquanto inicialmente a Vida agora emaranhada no mundo entrou nele pelo caminho da “queda”, “afundamento”, “ser projetado”, “ser levado cativo”, sua entrada desta vez é de natureza bem diferente: enviado pela Grande Vida e investido com autoridade, o Homem Estrangeiro não cai mas adentra ele mesmo o mundo.
O ir adiante e voltar devem ser tomados literalmente em seu significado espacial: eles realmente conduzem, no sentido de um “caminho” atual, do exterior à clausura do mundo, e na passagem tem que penetrar através de todas as suas cascas concêntricas, i.e., a múltiplas esferas ou eões ou mundos, a fim de alcançar o espaço mais interior, onde o homem está aprisionado.
Esta passagem através do sistema cósmico é da natureza de um rompimento, portanto já uma vitória sobre seus poderes.
Aqui temos a razão porque a mera chamada do despertar, feita de fora, não é suficiente: não somente deve o homem ser desperto e chamado a retornar, mas em suas almas devem escapar do mundo, uma verdadeira ruptura deve ser feita na “parede de ferro” do firmamento, que barra o caminho para fora assim como para dentro. Somente o ato real da divindade em si mesma entrando no sistema pode fazer este rompimento. Assim já pelo mero fato de sua descida o mensageiro prepara o caminho para as almas ascendentes. Dependendo do grau de espiritualização em diferentes sistemas, entretanto, a ênfase pode mudar crescentemente desta função mitológica a uma puramente religiosa incorporada na chamada como tal e no ensino que tem a dar, e portanto também na resposta individual à chamada como contribuição humana à salvação. Tal é a função de Jesus no Evangelho da Verdade de Valentino.
Aqui incidentalmente temos assim como os gnósticos “cristãos” em geral podiam considerar a paixão de Cristo e a razão para ela: é devido à inimizade dos poderes da criação inferior (o princípio cósmico: “Erro” — usualmente personificado nos Arcontes), ameaçado nem seu domínio e até existência por sua missão; e frequentemente, o sofrimento e a morte eles eram capazes de infligir sobre ele não são em absoluto reais1.
Por último aquele que vem é idêntico àquele para quem ele vem: a Vida, o Salvador, com a vida a ser salva. O Estrangeiro de fora vem àquele que é estrangeiro no mundo, e os mesmos termos descritivos podem de forma surpreendente alternar entre os dois. Ambos no sofrimento e no triunfo, é sempre impossível distinguir qual dos dois está falando ou para quem uma afirmação se refere. O prisioneiro aqui também é chamado o “homem estrangeiro”, e reganha como tal esta qualidade através do encontro com o Estrangeiro enviado de fora.
Há uma forte sugestão de um duplo papel ativo-passivo de uma e mesma entidade. Acima de tudo o Estrangeiro que desce redime ele mesmo, ou seja, àquela parte dele mesmo (a Alma) uma vez perdida no mundo, e por conta disto ele, ele mesmo, deve se tornar estrangeiro na terra da escuridão e no final um “salvador salvo”.
Esta busca, descoberta, e reunião de seus próprios é um processo trabalhoso limitado à forma forma espaço-temporal da existência cósmica. Isto nos leva à ideia que o salvador não vem apenas uma vez ao mundo, mas que desde o começo dos tempos ele vagueia em diferentes formas através da história, ele mesmo exilado no mundo, e revelando ele mesmo sempre de novo até que, com a reunião completa, ele possa ser liberado de sua missão cósmica (doutrina mais completa nas Homilias Pseudo-Clementinas). Aparte das diferentes encarnações humanas, a forma constante de sua presença é precisamente a chamada do outro mundo ressoando através do mundo e representando o estrangeiro em seu meio; e entre suas manifestações ele anda invisível através do tempo.