Deusa

MÃE — DEUSA

VIDE: GRANDE MÃE; MUSAS
Mitologia Grega
Adam McLean: The Triple Goddess: An Exploration of the Archetypal Feminine (Hermetic Research Series)

Consultando Adam MacLean, com alguns ajustes em suas colocações, é possível entender que as mitologias antigas, parcialmente derivadas das religiões de mistério e das tradições de iniciação, deram ao homem uma abertura capaz de revelar sua psique e o mundo que a cercava enquanto projeção desta estrutura interior; as forças interiores do homem se viam como os deuses e deusas representados do mesmo modo como forças do reino exterior da Natureza.

No tocante a deusa, ou as deusas, entende-se que a deusa é tríplice, manifestando-se, pois, sob três aspectos, visto unir em si os complementos e os opostos da psique. Assim sendo, ela é tanto delicada como rigorosa e implacável. É plena de luz e de visões famosas, mas, ao mesmo tempo, pode nos levar para as trevas e para terríveis horrores. O aspecto feminino retratado pela deusa salienta um aspecto fundamental, descrito por MacLean.

O feminino, contudo, é capaz de unir os opostos. Sua imagem cósmica é a Lua, com sua fase sombria de Lua Nova, sua fase luminosa de Lua Cheia e seus crescentes e minguantes intermediários. Ela não é constante; em vez disso, move-se num ciclo, penetrando nas trevas e, mais tarde, trazendo a luz. Os deuses masculinos, identificados com a luz do Sol, não poderiam passar por um tal ciclo; suas mitologias eram forçadas a ser dualistas — os “bons” deuses celestes e os “maus” deuses do sombrio “mundo inferior”. A deusa tríplice, por outro lado, traz em si todas as polaridades. Encontramo-la numa variedade de disfarces, e, como é mutável, ela desafia o nosso pensamento unidimensional com contradições e aparentes inconsistências. Ela muda de forma a cada volta do seu ciclo e o nosso pensamento, para compreendê-la, tem de se ajustar à mudança.

Para encontrar a deusa tríplice na mitologia, temos de voltar ao substrato do mito. Bem antes da ascendência do mito de Cristo, os mitos primais da deusa foram esmagados sob o peso de gerações de deuses masculinos que usurparam o seu lugar no esquema das coisas, conquistando os seus centros sagrados e tomando para si mesmos algumas facetas dos seus atributos. Se remontarmos aos mitos primevos da humanidade, encontraremos a deusa na sua forma mais pura, normalmente tríplice. No Antigo Egito, é1 e, mais tarde, [wiki base=”pt”]Isis[/wiki], que a representam para nós. Observamos que o culto e o reconhecimento de [wiki base=”pt”]Isis[/wiki] se mantêm fortes, embora comece, em dinastias egípcias posteriores, uma masculinização da hierarquia dos deuses com [wiki base=”pt”]Ámon-Rá[/wiki]. Na Grécia Antiga, os primeiros mitos esboçavam muitas manifestações da deusa. Quem estudou mitologia grega pode ver que, provavelmente no início do primeiro milênio a.C., o deus celeste [wiki base=”pt”]Zeus-Dyeus[/wiki] foi levado para a Grécia por uma nova onda migratória. A partir de então, o caráter dos mitos gregos se transformou de alguma maneira quando [wiki base=”pt”]Zeus[/wiki], por meio da violação e da astúcia, destronou a deusa de muitos dos seus Centros de culto. Ele teve filhos com, deusas individuais — mas esses filhos eventualmente reuniram em si alguns atributos da mãe. Portanto, podemos ver que os povos gregos desse ponto de transição precisaram identificar-se antes com deuses masculinos do que com as deusas mais antigas, razão por que reformularam sua mitologia a fim de se adaptarem. Mas esse processo é bem transparente, pois os estudiosos podem identificar essas mudanças nos mitos e, eliminando as influências mais recentes, recuperar a essência das deusas primais.

Na realidade, a mitologia grega nos fornece a maior fonte de materiais sobre a deusa. Para exemplificar o processo, consideremos Apolo. Apolo é gerado por [wiki base=”pt”]Zeus[/wiki] em [wiki base=”pt”]Leto[/wiki], uma deusa titã pertencente ao antigo substrato de deuses e deusas que existia na Grécia antes de [wiki base=”pt”]Zeus[/wiki] e de sua consorte [wiki base=”pt”]Hera[/wiki]. [wiki base=”pt”]Hera[/wiki] tem ciúmes do relacionamento de [wiki base=”pt”]Zeus[/wiki] com a deusa mais antiga e tenta impedir [wiki base=”pt”]Leto[/wiki] de dar à luz, mas esta foge para uma ilha distante. Lá, pare Apolo e sua irmã gêmea, [wiki base=”pt”]Ártemis[/wiki]. Apolo é um deus solar e [wiki base=”pt”]Ártemis[/wiki] torna-se a deusa virgem caçadora da luz lunar. Apolo recebe o dom da música e muitos mitos falam dele como a fonte da inspiração, tocando a sua lira. Contudo, embora fosse um deus popular entre o povo grego, Apolo de certo modo nunca pôde usurpar o lugar das Musas que o precederam, representantes da forma trinitária da deusa. As Musas permaneceram como a inspiração espiritual feminina presente na música, na poesia e nas artes. Podemos ver que o culto de Apolo tentou substituir as Musas por um deus masculino, mas a psique coletiva dos povos gregos não poderia desistir de suas deusas da inspiração com muita facilidade. Assim sendo, Apolo, em vez de ser o rival das Musas, teve de se tornar o seu protetor. Podemos identificar muitos exemplos dessas tentativas de substituição de deusas das mitologias precedentes por divindades masculinas. A mitologia grega mostra especial transparência quanto a isso, provavelmente por ter sido registrada enquanto esses processos se desenvolviam. Outras mitologias, dos povos teutônicos ou escandinavos, por exemplo, só foram registradas séculos ou até milênios depois do término desses processos, sendo mais difícil de deslindar as suas linhas e de identificar os primeiros estratos das deusas nessas culturas.

O caráter tríplice da deusa é muito importante. Não se trata de uma mera multiplicação por três, mas de uma manifestação sob três aspectos; a deusa se revela em três níveis, nos três domínios do mundo e da humanidade. Assim é que o ser humano é tríplice, tendo corpo, alma e espírito; as três facetas da deusa costumam ser vistas como correspondentes a esses planos do microcosmo do ser humano. O macrocosmo também é tríplice: consiste no céu (o reino uraniano), na superfície da Terra (e, por vezes, no Mar) e nas profundezas da Terra (o Mundo Inferior ctônico). Algumas deusas tríplices exibem facetas que as ligam com esses três reinos. Do mesmo modo, o reino do tempo tem três dimensões — Passado, Presente e Futuro — e algumas deusas correspondem, de maneira tríplice, à divisão do tempo.

Como já indiquei, a deusa tríplice une dualidades, razão por que, em algumas de suas manifestações, uma de suas facetas é positivamente inclinada para os seres humanos que a encontram, outra tem disposição negativa e uma terceira serve de mediação às duas e decide o seu curso de ação.

O mais importante aspecto tríplice da deusa é a sua manifestação como Virgem/Mãe/Anciã (ou (Mãe/Esposa/Filha). Trata-se talvez da representação com a qual as pessoas têm mais facilidade de se identificarem, visto corresponder às três fases da vida da mulher. Ela também nos remete ao ciclo das fases lunares e ao ciclo menstrual, á ovulação e à possível gravidez. São processos que correspondem às facetas de Jovem/Mãe/Velha.

Outra maneira de considerar a deusa tríplice pode advir do exame de suas várias relações possíveis com o masculino. Desse modo, podemos vê-la como Virgem, sem vínculo com o masculino (como [wiki base=”pt”]Atena[/wiki]), como a figura da esposa madura e fiel ([wiki base=”pt”]Hera[/wiki]) ou como a Prostituta que escolheu os seus muitos amantes ([wiki base=”pt”]Afrodite[/wiki]). A deusa também pode ser vista por meio de relações com o masculino que não envolvem esse aspecto ilustração alquímica sexual. Assim, pode ser a Filha (ou, Viúva).

A concepção hermética dos Três Princípios — Sal, Enxofre e Mercúrio — também pode fornecer uma imagem das três facetas da deusa. O Sal é o princípio contrátil, sombrio e terreno; o Enxofre é o princípio radioso, expansivo, luminoso e celeste em ação; e o Mercúrio é o elemento que serve de mediação e de ligação para o Sal e o Enxofre do nosso ser. O Mercúrio sobe até o elemento Enxofre e traz uma essência para a esfera do Sal que está no interior da nossa alma, em eterna circulação entre essas polaridades. Assim, o Mercúrio pode ser considerado uma imagem da nossa consciência, podendo esse tríplice aspecto ser reduzido, embora isso seja uma grosseira simplificação à trindade Corpo, Alma e Espírito da nossa natureza. Algumas deusas tríplices têm facetas paralelas às trindades Sal-Mercúrio-Enxofre ou Corpo-Alma-Espírito, em particular nos casos em que duas facetas suas são polarizadas e quase antagônicas entre si, enquanto o terceiro membro lhes serve de mediação.


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