CRISTIANISMO ETIÓPICO
Segundo pesquisa de nosso amigo Antonio Carneiro, a Igreja Etíope possui um dos cânones mais amplos, constam o “breve” do Antigo Testamento com textos da Septuaginta aceitos pelos ortodoxos (incluindo Salmo 151, a Oração de Manasé, o Livro III de Esdras e o Livro III dos Macabeus), mais os Livro de Enoque, Kebra Nagast e Livro dos Jubileus. Os três livros de Macabeus diferem bem dos seus homônimos, dos outros judaicos-cristãos. Algumas diferenças existem quanto à ordem dos livros além de incluir outros. Para melhor conhecer o cânone do Cristianismo Etiópico, Antonio Carneiro recomenda esta página, embora em inglês: The Biblical Canon Of The Ethiopian Orthodox Church Today.
O Cristianismo etiópico
Fonte: Histoire du Proche Orient 2004-2005, Ethiopie — Cours de Mr. Pérès, Histoire de l’Ethiopie n° 3
Em seguida ao Concílio de Calcedônia, la Igreja d’Etiópia foi arrastada à aderir à doutrinas as quais não tinha senão um conhecimento limitado e mais particularmente à doutrina monofisita seguindo à da Igreja Copta do Egito da qual dependia então. As ermitas, na Etiópia chamadas “Tsadkan”, quer dizer os Justos assim como os Nove Santos participavam da evangelhização da região norte da Etiópia, da campanha axumita.
Assim, os cristãos da Etiópia admitiram as decisões do concílio de Nicéia em 325, mais ainda aquelas do Concílio de Constantinopla em 381 e de Efeso em 431 quando recusaram a doutrina diofisita do Concílio de Calcedônia em 451 afirmando que o Cristo possuía duas naturezas distintas: a divinizada e a humanizada. Daí o nome de monofisita, segundo o qual o Cristo não teria senão uma natureza a divinizada perfeitamente unida àquela da humanizada. Entretanto, os etíopes recusaram ser chamados monofisitas e preferiram o termo de miafisitas que é a tradução do termo etiópico “Tewahido” que significa unidade. O clero discutia em numerosas repetições essas distinções teológicas que finalmente não tiveram senão pouca repercussão sobre a piedade popular. A consequência da adoção desta doutrina cara à Igreja copta do Egito foi a ruptura da Igreja Etiópica com esta última.
O reconhecimento da doutrina miafisita, ou para nós a doutrina monofisita, não é suficiente para definir o cristianismo etiópico. Esse cristianismo apresenta particularidades muito surpreendentes que não estão ainda de todo explicadas (por exemplo donde vem a circuncisão?1). A judaização da Etiópia parece ter tido lugar a partir do século I da era cristã, visto a importância de elementos de origem hebraica que apareceram no cristianismo etiópico.
Com base em livros do especialista francês em tradição cristã da Etiópia, Jacques Mercier, resumimos abaixo esta linhagem de cristianismo com forte ênfase em aspectos rituais e mágicos, como uso de talismãs, selos, Nomes sagrados, com base numa angelologia e outras considerações litúrgicas muito próprias.
*Rouleaux magiques ethiopiens
*Vierges d’Ethiopie
*Les traverses éthiopiennes de Michel Leiris
Não se sabe infelizmente nada da judaização parcial da Etiópia: precedeu a cristianização, que teve início no século IV, como se supõe geralmente? Qual foi a amplitude? Suscitou uma literatura original? Nenhum monumento não foi conservado, e a literatura judaica (falacha) moderna da Etiópia se apresenta como uma pálida adaptação de textos cristãos. Nota-se no entanto que certas explicações dos talismãs, em meio cristão, alimentam-se na mesma fonte do Apocalipse de Noé (Enoque, 60).
Para os letrados abissínios cristãos, a arte dos talismãs é reverenciada e mais antiga que a pintura figurativa que segundo eles teve início na época do Cristo. Os talismãs não são fruto de uma técnica humana, mas um “mistério” que se recopia fielmente desde sua revelação. Duas tradições têm curso a respeito de sua origem: segundo uma, teriam sido obtidos e revelados antes do dilúvio por instigação do demônio Azaziel; segundo outra, foi Deus ele mesmo que os revelou a diversos personagens do Antigo Testamento, em particular a Abraão (o nawa bagu: “ei os cordeiro”; esta palavra do Evangelho de João e a imagem associada foram deslocadas sobre o relato do sacrifício de Isaac) e a Salomão (a Rede de Salomão).
O primeiro mito é uma glosa sobre o Livro de Enoque (capítulos 6-10 e 69). Adão sobre seu leito de morte adjurou Seth e seus descendentes a vive “santamente” afastados da família de Caim, o assassino de Abel. Eles se retiraram então para a Montanha santa para jejuar e orar. Louvavam sem cessar o Criador e suas vozes se uniam àquelas dos anjos que percebiam acima deles. Na planície, a seus pés, viam os filhos de Caim se dar ao prazer e à luxúria. Na época de Yared, duzentos dentre eles, tentados pelo demônio Azaziel, desceram da Montanha santa para se unir às filhas de Caim. Estes filhos de Seth ensinaram aos humanos segredos conhecidos até então pelos seres celestes: entre estes mistérios, a grafia à tinta vermelha e à tinta negra, os talismãs protetores associados aos ritos de evocação dos demônios, os Nomes secretos de Deus e os talismãs expulsando os demônios possuídos.
Salomão não é menos célebre na Etiópia que no Oriente Médio. No Gabão, recebeu do Eterno a sabedoria (1Reis 3,12) da qual se servia para evocar os demônios, lhes fazer revelar seus segredos e empregá-los na construção do Templo. O anjo Miguel lhe deu um anel sobre o qual estava gravado um selo e o Nome secreto de Deus — Nome idêntico àquele pelo qual ele venceu Satnael no quarto dia da Criação.
Estas duas glosas apelam a um fundamento judaico, mas como tantas outras lendas “judaicas” etiópicas, sua fonte direta é a literatura apócrifa cristã oriental. Durante séculos a Etiópia imperial se identificou ao cristianismo de tendência monofisita e esteve em conflito permanente com os povos muçulmanos que a cercavam. Mas a medicina, a magia e a arte dos talismãs, ao invés de reduzir, se beneficiou amplamente da influência do Islã. Por conseguinte, a palavra talsam (talismã) vem do árabe tilsam (e esta do grego telesma), e alguns letrados etiópicos estimam a origem dos talismãs como sendo islâmica ou persa. Os muçulmanos do Egito faziam desde o século X grande consumo de rolos protetores, a julgar dos exemplares impressos em xilografia que foram encontrados. Tem fundamento aproximar a disposição alternada de seus textos e imagens, seus motivos desenhados (personagens alados, quadrados entrelaçados, selos) das obras etiópicas mais recentes. A obra de Al-Buni exerceu uma profunda influência sobre a magia etiópica e a ciência dos nomes: o shams al maarif foi traduzido na língua litúrgica etiópica (gueze) antes do século XVIII. Uma comparação mais atenta dos talismãs islâmicos e das obras etiópicas revela que estas não são frequentemente a cópia fiel de seus modelos, mas se apresentam todavia como sua configuração em imagens e sua interpretação gráfica, até pictural: os quadros mágicos, os números e nomes de anjos e de Deus, os selos se tornam entrelaçados de linhas e de letras nas quais aparecem olhos e faces.
Não se pode deixar de se perguntar quanto a eventual filiação entre os talismãs etiópicos e os yantra hindus. Não parece haver relação direta, mas somente muito mediatizada (helenismo, islã tardio). A confrontação das concepções revela profundas divergências sob analogias superficiais.
No Ocidente fala-se rapidamente de “magia” a respeito dos rolos. Os conceitos etiópicos sendo muito diferentes, convém começar por expor o exorcismo ortodoxo e a posição da Igreja. A estrita ortodoxia prescreve que a leitura dos Evangelhos e dos Salmos de Davi antes de lavar o enfermo com água pura. Ela tolera a leitura das Vidas de Santos se têm lugar em um santuário, ou as Homilias de Miguel. Mas quanto mais os textos contêm Nomes (asmat) de Deus, mas a leitura é desaprovada, sem ser todavia interditada, o que nem sempre foi o caso, posto que no século XIV o imperador Zara Yaqob, assimilando o uso dos Nomes de Deus não contidos nos dois testamentos à idolatria, a interditou sob pena de morte.
A recitação dos Nomes de Deus, embora desaprovada pela estrita ortodoxia, é em geral considerada como um exercício religioso igual àquele dos Evangelhos. Assinalemos todavia que o uso das orações e dos talismãs é somente um polo, hoje em dia em vias de desparecimento, da medicina etiópica, o outro polo sendo aquele das plantas e das substâncias animais. Na concepção tradicional estas duas técnicas se harmonizam como “o mel e a manteiga”, a primeira agindo sobre a causa espiritual da doença e a segunda sobre seus sintomas.
O aspecto mais notável dessa literatura mágica etiópica é a importância dos Nomes de Deus, dos anjos, dos demônios, dos zar. Seu conhecimento confere ao dabtara2, o domínio sobre todos os espíritos e logo o poder de cura, morte e subserviência.
Os dabtara classificam em geral as pinturas dos rolos em dois grupos: as pinturas figurativas (seel) e os talismãs. A Igreja, embora considerando por vezes estes como análogos dos Nomes secretos de Deus no domínio pictural, tende todavia a rejeitá-los como revelação demoníaca, ou pelo menos obra maculada de práticas ilícitas. O primeiro mito de origem testemunha desta ambivalência a respeito dos talismãs.
Escritos na Internet
*The Kebra Nagast
*La Iglesia de Etiopía
*The Ethiopian church : historical notes on the Church of Abyssinia
*Saint Michael the archangel
*Te’ezaza Sanbat, Commandements du Sabbat
*New Testament Ethiopic Amharic 1874 Book1
*1. Le christianisme éthiopien, Stéphane Ancel (chercheur à l’INALCO)
*Description du numéro Religions & Histoire n° 17
Excertos
- Sobre este tema ler mais em : 01 Printemps 2010 : Les chemins de l’identité en Afrique du XVe ao XXe siècle. La circoncision et l’excision en Éthiopie du XVe au XVIIIe siècle : lectures d’un rituel, Marie-Laure Derat[↩]
- Clérigo não ordenado padre e que seguiu longos estudos de canto, de poesia e de literatura; praticante também da medicina tradicional sob seus aspectos mais variados[↩]