Criatura

CRIAÇÃO — CRIATURA

A análise compreensiva de Mestre Eckhart distingue, implicitamente, porém, o Lugar de Deus do lugar das criaturas. Não se trata de dois lugares distintos no espaço, no sentido que nós damos ao lugar, mas de dois modos radicalmente distintos numa única e mesma integração, num único e mesmo lugar, no lugar de todos os lugares. É por isso que Mestre Eckhart dá prioridade à expressão “ser-em” para designar o lugar de deus relativamente aos sentidos de ser-diante-de e ser aí. Pois tanto a acepção imediata de “diante de” como o “aí” pressupõem uma distinção espacial e não modal. Para Mestre Eckhart e a totalidade do pensamento medieval, a diferença fundamental entre o criador e as criaturas, entre deus e as coisas é uma diferença de modalidade, deus e as criaturas estão sempre numa unidade radical, a unidade da criação. Buscar a diferença entre o criador e as criaturas como uma diferença entre duas coisas-objetos é sempre retirar o criador e as criaturas da unidade radical da criação. A questão da diferença entre deus e as coisas é a questão de uma diferença no seio do mesmo. Para a experiência religiosa medieval, não há um “fora” de deus. Todo “fora” de deus já é dentro da divindade de deus. Isso é o que vai explicar por que os medievais entendem todo “antes”, como por exemplo o antes do acontecimento do Cristo, como uma prefiguração. Para nós é difícil representar um “fora” que está “dentro”. Essa dificuldade só pode se desfazer quando nos aproximamos do que é a totalidade de deus, o lugar de todos os lugares. No sermão número IX, Mestre Eckhart vai mostrar que a totalidade de deus é o modo dos modos, é um ser-uno, um ser-inteiramente, indivisamente, integralmente. E esse modo que fundamenta a diferença entre o lugar de deus e o lugar das criaturas. Mestre Eckhart diz que o ser-inteiramente de deus é como “a alma que está inteira, indivisa e integralmente no pé, no olho e em cada membro”. Ser uno é ser não um, isto é, uma parte individuada e autônoma, mas ser inteiramente em cada parte, em cada divisão e limitação. Somente na pressuposição de uma parte individuada e autônoma é que uma coisa pode ser “fora” da outra, pode ser “diante” da outra, pode ser-aí. Mas deus está para as coisas assim como a alma está para as partes do corpo. Essa relação de analogia com a alma quer indicar não somente o modo em que deus é e está em todas as criaturas, mas também o modo em que se deve apreender o que é ser-criatura, o que é possuir ser, ou seja, tempo e lugar, e, dessa forma, estar sujeito a limitações. Com base na analogia estabelecida por Mestre Eckhart, ser criatura é ser-parte ou membro e não uma individualidade autônoma e independente. Ser criatura é ser num pertencimento inalienável. À base da analogia está, portanto, uma apreensão do lugar de deus como o modo de ser inteiramente uno e uma apreensão do lugar das criaturas como o modo de ser parte integrante e orgânica, de ser num pertencimento. ( Marcia Sá Cavalcante Schuback )


Segundo trabalhos de M.D. Philippe, precisemos que a «pessoa» (apreendida ao nível metafísico, ao nível do ser, e não ao nível psicológico — onde se vê o crescimento vital e o condicionamento) não é um princípio; ela exprime o «pos», o «como», a maneira de ser da mais perfeita ousia que o filósofo pode experimentar diretamente: o homem, ser dotado de espiritualidade (intelectualidade e amor espiritual). Se, segundo Guénon, o Si é mais que a personalidade, se é «o princípio transcendente e permanente do qual ( … por exemplo ) o homem não é senão uma modificação transitória e contingente» e se «imutável em sua própria natureza não é afetado pelo desenvolvimento das possibilidades indefinidas das passagens da potência ao ato» do ser do qual é princípio, devemos convir que por nenhum aspecto dele mesmo o Si é ser-em-potência. Se além do mais ele não difere de Brahma, então é «algo» do divino ele mesmo. Mestre Eckhart dele fala nestes termos: «Há na alma algo que é incriado e incriável — e isso é o Intelecto». Enfim Tomás de Aquino nos fornece a chave última de compreensão, apesar de em sua obra ter evitado de uma maneira geral se referir às outras tradições que aquela de sua Igreja: «A criatura, em Deus, é a essência divina ela mesma». É dizer que há no divino o arquétipo de cada criatura. O fim último de todo ser dotado de espiritualidade, dele somente, é, de certa maneira, de «retornar» a este estado principial de onde procede. ( Christophe Andruzac: René Guénon, La contemplation métaphysique et l’expérience mystique )


Há no pensamento de muitas religiões a afirmativa de que do UM veem todas as coisas, que para o Um todas retornam. Se considerarmos bem esta máxima, ela pode ser traduzida da seguinte forma: Tudo que há ou existe vem do Ser, e ao Ser retorna.” Em todos os pensamentos do mundo, há sempre a ideia do retorno.

Há aqui um dualismo inevitável em todo o monismo. E se alguém se colocasse numa posição monadológica, pluralista, admitindo que o universo nada mais é que o resultado de combinações figurativas de mônadas (como os átomos de Demócrito, por exemplo), ainda nesse pensamento, o desaparecimento de um ser este ou aquele, se daria no retorno aos elementos componentes, que deixando de formar esta ou aquela figura, não deixariam de ser o que eram.

Numa ideia criacionista, como a cristã, o Ser Supremo, Deus, dá surgimento, do Não-ser, de criaturas que são marcadas pelo limite, pois elas não são tudo quanto podem ser. O dualismo de ato e potência, que já se fixara nitidamente no aristotelismo, ainda afirma o 2. A homogeneidade suprema do Ser, que é Deus, está ante a heterogeneidade da criatura, e os contrários, Um e Múltiplo, surgem inevitavelmente para estabelecer o binário.

No pitagorismo, sem querer aprofundar a sua simbólica, a díade é inevitável na criatura, que pode ser sempre vista diadicamente, pois é sempre dois, ato e potência, essência e existência, ser e limite, presença e ausência, porque é privada de algo, etc. A díade, assim, transparece em todo o pensamento filosófico, como surge em todo o pensamento religioso, e até nas formas mais simples de apresentar-se.

Ao procurarmos a Unidade, encontramos sempre a Dualidade. A individualidade afirmada é uma separação do que não é ela (ex. eu e não-eu). A antítese apresenta-se inevitavelmente. O que se individualiza, distingue-se do Outro. Para que algo se afirme é preciso excluir. A Lógica Formal é uma lógica de excludência e uma ideia só se torna nítida, distinta, quando se separa e se afasta de outra, que lhe é contrária. A segregatio é inevitável, como o é a dicotomia, a separação, a krisis aberta, Todo ser finito, como unidade, enquanto tal, separa-se de outros.

O dois não é um plural, mas a diferenciação. Por isso Pitágoras dizia que o Um não é número, porque o um, enquanto tal, é apenas ele. Mas comparado a outro já se torna numérico, (de número, numeroso, que vem de nomos, norma, regra).

A polaridade do binário surge em todo o existir. Agente e paciente, positivo e negativo, movimento e quietude, os polos magnéticos, etc., todas essas dualidades polares, extremos específicos ou genéricos, surgem em todo pensamento.

No homem, tomado especificamente, macho e fêmea, o eterno feminino (a anima de Jung) e o eterno masculino (o Animus), as duas ordens energéticas de extensidade e intensidade, etc.

No livro da Gênesis, a criação é binária: a passagem do caos para o cosmos, e a passagem do que antes não era para o que é. (Mário Ferreira dos Santos – Tratado de Simbólica)