[…] Antes de tachar o cristianismo de moralista e de lhe dirigir a censura de desviar o homem da ação e da realidade, convém perguntar-se sobre as condições que permitiram que tal censura viesse à luz e visasse uma doutrina que não reconhece como verdadeiro e verídico senão o real, e como real senão agir.
Essas condições não são nada além do conjunto das pressuposições que compõem a verdade do mundo. Que estas estendam seu reino à quase totalidade do desenvolvimento do pensamento ocidental a ponto de determiná-lo quase inteiramente, tal não basta em absoluto para estabelecer sua validade. E menos ainda porque a suspeita não pode deixar aparecer que se trata da simples formulação de um preconceito de senso comum. Que há de mais imediatamente evidente do que isto: a realidade é o que nós vemos? O agir não escapa a esta regra. A modificação que ele produz é, ela mesma, algo que se pode [335] ver, é uma “transformação do mundo”. O círculo implicado nesta série de “evidências” se deixa, todavia, reconhecer quando perguntamos: que é uma evidência, de que fenômeno se trata aqui? É evidente o que se mostra a nós, o que se pode ver, com os olhos do corpo ou os do espírito. O que se mostra a nós, o que se pode ver, o que é visto ou pode tornar-se visível: no horizonte de visibilidade do mundo, em sua verdade. Assim, a verdade do mundo é a pressuposição – oculta ou consciente – de todas as teses que identificam a realidade, a do agir notadamente, com esta verdade, com o próprio mundo. Do ponto de vista filosófico, extraordinária originalidade do cristianismo era perceber este círculo e pô-lo radicalmente em questão.
A propósito do agir justamente. Pois não basta preconizar a ação e denunciar os bons sentimentos e as declarações vazias, denúncia a que cada um facilmente se somará. O que está em questão são as condições de uma ação efetiva e real e, assim, as condições da própria realidade. As condições de uma ação efetiva não são as circunstâncias em que tal ação é suscetível de se produzir. Como quando dizemos, por exemplo: a criança devia ser bastante alta para alcançar a maçaneta da janela, sem o que ela não teria podido abri-la. Ou ainda: as classes operárias não tinham alcançado um grau suficiente de maturidade para adquirir uma visão clara das forças presentes e organizar-se em consequência. Tais condições não passam ainda de condições exteriores, contingentes e variáveis da ação; são condições históricas. Elas definem uma situação mais ou menos complexa, mas particular, na qual se pode considerar que esta ou aquela ação, ela mesma particular, teria ou não oportunidade ser bem-sucedida. Não remontam de modo algum à possibilidade última e essencial do que faz que, em cada um desses casos, algo como um “agir” seja possível – que a criança possa esticar o braço até a maçaneta, ou os homens tomar armas e correr para as barricadas. Longe de elucidar a possibilidade interna do agir, as teorias mundanas da ação a pressupõem simplesmente sem nem sequer percebê-la a título de problemática. [336]
É precisamente esta possibilidade interior e última do agir o que o cristianismo capta. E ele a captou nesse nível de profundidade em que ela é identicamente a possibilidade do próprio ego. É enquanto é um ego transcendental, esse Eu Posso fundamental cuja gênese descrevemos, que o homem é capaz de agir – de modo algum enquanto indivíduo empírico, enquanto homem pertencente ao mundo. Essa é a razão por que seu agir tampouco é um agir mundano, um processo objetivo, mas o agir deste ego transcendental, deste único Eu Posso que pode agir. Ora, o cristianismo prosseguiu a análise desta possibilidade interior e última do agir até o Fundo. A gênese do Eu Posso fundamental que eu sou e que é o único que pode agir é o nascimento transcendental do ego. A análise do nascimento do ego mostrou que cada um dos poderes que compõem o ser deste ego – pegar, caminhar, correr, mas também pensar, imaginar, etc. – só é possível quando dado a ele mesmo, posto assim em posse de si mesmo e capaz por conseguinte de se exercer. Mas esta doação a si de cada um de nossos poderes como antecedente indispensável a seu exercício reside na doação a si do ego, a qual reside na doação a si da Vida absoluta e não se cumpre em nenhum outro lugar. É assim que o ato mais simples, pressupondo em si a autodoação da Vida, a qual não é nada além de sua autorrevelação – cada ato, mesmo, pois, o mais humilde, traz em si esta autorrevelação da Vida absoluta, o Olho onividente de Deus, como dizíamos – de modo que ele se cumpre “diante de Deus”.
É aqui que as teses que situam a ação no mundo se mostram superficiais. Não só elas são incapazes de dar conta do aspecto metafísico-religioso, digamos “dostoievskiano”, dos atos humanos, do “Julgamento” que parece vincular-se invencivelmente a cada um deles. No próprio plano filosófico elas são impotentes para distinguir o agir humano de um simples deslocamento objetivo, de um processo natural. E isso porque, contentando-se com respeito a este último com uma simples constatação, não estão em condições de remontar a esta possibilidade interna do agir sem a qual, todavia, [337] nenhuma ação poderia produzir-se. Assim como elas não podem dar conta do fato, todavia essencial, de que toda ação está ligada a um indivíduo que é seu agente. Ao mesmo tempo que a possibilidade da ação, é a do “Eu” do “Eu Posso” a partir do qual esta sempre se produz enquanto ação por natureza individual o que lhes escapa.
Ora, o cristianismo não se opõe somente às descrições superficiais que tomam o agir por um acontecimento do mundo. A partir de suas intuições, é perfeitamente possível compreender porque tais descrições são inevitáveis, produzindo-se e sendo recebidas em todas as partes como expressões fiéis do fenômeno da ação. O cristianismo, com efeito, não desconhece, de modo algum, a verdade do mundo, esse modo de aparecer que descrevemos longamente e que, enquanto modo efetivo de aparecimento, é incontestável. Ele apenas lhe circunscreve o alcance, recusando a esse modo de aparecimento o poder de exibir em si a realidade – notadamente a realidade do agir. É assim que, no mundo, o agir só aparece em forma de comportamento exterior que deixa escapar sua realidade, que está contida na vida. Assim, a duplicidade do aparecer explicava porque o agir humano se manifesta de duas formas diferentes, das quais somente uma contém a realidade deste agir, enquanto a outra, o comportamento exterior do jejum, por exemplo, não passa de um envoltório vazio. (Michel Henry MHSV)