Kristeller Humanismo

Renascimento Humanismo — P.O. Kristeller
Humanismo renascentista, segundo Kristeller
Excertos de análise de G. Reale

a) A primeira é de P.O. Kristeller, que procurou limitar fortemente o significado filosófico e teórico do humanismo, inclusive a ponto de eliminá-lo. Segundo esse estudioso, bastaria deixar ao termo o significado técnico que ele tinha originalmente, restringindo-o assim ao âmbito das disciplinas retórico-literárias (gramática, retórica, história, poesia e filosofia moral). Segundo Kristeller, os humanistas do período que estamos tratando foram superestimados, sendo-lhes atribuído um papel de renovação do pensamento que eles, na realidade, não desempenharam, visto que não se ocuparam diretamente da filosofia e da ciência. Em suma: para Kristeller, os humanistas não foram verdadeiros reformadores do pensamento filosófico porque, em absoluto, não foram filósofos.

Eis algumas afirmações significativas desse estudioso: “O humanismo renascentista não foi tanto uma tendência ou um sistema filosófico, mas muito mais um programa cultural e pedagógico, que valorizava e desenvolvia um setor importante, mas limitado dos estudos. Esse setor teve como seu centro um grupo de matérias que, essencialmente, não diziam respeito aos estudos clássicos ou à filosofia, mas sim aquilo que, a grosso modo, pode ser indicado como literatura. Foi a essa peculiar preocupação literária que o estudo verdadeiramente intensivo e extensivo dedicado pelos humanistas aos clássicos gregos e especialmente latinos deveu o seu caráter peculiar, que o diferencia dos estudos próprios dos filólogos clássicos a partir da segunda metade do século XVIII. Ademais, embora os studia humanitatis incluam uma disciplina filosófica, isto é, a moral, na verdade excluem por definição campos como a lógica, a filosofia da natureza e a metafísica, além da matemática e da astronomia, da medicina, do direito e da teologia, para citar apenas algumas matérias que tinham um lugar claramente definido no currículo universitário e nos esquemas classificatórios da época. Parece-me que esse simples fato basta para fornecer uma prova irrefutável contra as repetidas tentativas de identificar o humanismo renascentista com a filosofia, a ciência ou a cultura desse período, em seu conjunto.”

Entre outras coisas, Kristeller cita como prova em favor de suas teses o fato de que, durante todo o século XV, os humanistas italianos não pretenderam substituir a enciclopédia do saber medieval por outra nova e que, ao contrário, “estavam conscientes de que sua matéria de estudo ocupava um lugar bem definido e limitado no sistema contemporâneo de estudos”. Assim, entendido desse modo, o humanismo não representaria em absoluto “a soma total da ciência do Renascimento italiano”.

Desse modo, segundo Kristeller, para compreender a época de que estamos falando, seria necessário dedicar atenção à tradição aristotélica, que tratava ex professo da filosofia da natureza e da lógica, que já havia se consolidado fora da Itália (sobretudo em Paris e Oxford) há bastante tempo, mas que na Itália só se consolidaria durante o século XVI. Diz Kristeller que foi na segunda metade do século XTV que “começou uma tradição contínua de aristotelismo italiano, a qual pode ser seguida através dos séculos XV e XVI e até por uma boa parte do século XVII”.

Esse “aristotelismo renascentista” levou adiante os métodos próprios da “escolástica” (leitura e comentário dos textos), mas enriquecendo-se com as novas influências humanistas, que iriam exigir dos estudiosos e pensadores peripatéticos que retornassem aos textos gregos de Aristóteles, deixassem de lado as traduções latinas medievais e fizessem uso dos comentadores gregos e também de outros pensadores gregos.

Desse modo, como destaca Kristeller, os estudiosos hostis à Idade Média confundiram esse aristotelismo renascentista com o resíduo de tradições medievais superadas e, assim, considerando o resíduo de uma cultura ultrapassada, acharam que deviam deixá-lo de lado em benefício dos “humanistas”, verdadeiros portadores do novo espírito renascentista. Mas, segundo Kristeller, tratar-se-ia de um grave erro de compreensão histórica, porque frequentemente a condenação do aristotelismo renascentista foi feita sem uma efetiva consciência daquilo que se estava condenando. À exceção de Pomponazzi (do qual falaremos adiante), que as mais das vezes foi seriamente considerado, um grave preconceito condicionou o conhecimento desse momento da história do pensamento. Por isso, Kristeller concluiu: “E relativamente pequeno o número de estudiosos modernos que realmente leram algumas obras dos aristotélicos italianos. O estudo de conjunto sobre essa escola que ainda exerce a maior influência é o livro de Renan sobre Averróis e o averroísmo (Averroès et l’Averroisme, Paris, 1861, 2- ed.), livro que teve notáveis méritos em sua época, mas que também contém muitos erros e confusões, que depois foram repetidos por todos.” Assim, é necessário estudar a fundo as questões discutidas pelos aristotélicos italianos desse período: desse modo, cairiam por terra muitos lugares comuns que só se mantêm porque foram continuamente repetidos, mas que carecem de base sólida, emergindo consequentemente uma nova realidade histórica.

Em conclusão, o humanismo representaria apenas uma metade do fenômeno renascentista e, mais ainda, a metade não filosófica. Assim, ele só seria plenamente compreensível se considerado junto com o aristotelismo que se desenvolveu paralelamente, o qual expressaria as verdadeiras ideias filosóficas da época. Ademais, segundo Kristeller, os artistas do Renascimento não deveriam ser vistos na ótica do grande “gênio criativo” (que constitui uma visão romântica e um mito do século XLX), mas sim como “ótimos artesãos”, cuja excelência não decorre de uma espécie de superior adivinhação dos destinos da ciência moderna, mas sim da bagagem de conhecimentos técnicos (anatomia, perspectiva, mecânica etc.) considerada indispensável para a prática adequada de sua arte. Por fim, se a astronomia e a física realizaram progressos notáveis, não foi por motivo de sua ligação com o pensamento filosófico, mas sim com a matemática. E aos filósofos custou-lhes se harmonizar com essas descobertas, porque, tradicionalmente, não havia uma conexão precisa entre matemática e filosofia.