Koyré (1971) – Boehme – Há no homem um traço divino

Essa liberdade e essa independência do ser espiritual em relação a Deus não fazem dele, no entanto, um ser “separado” dele. Há no homem um traço divino, a Bildniss, a imagem divina, o germe, semente de graça, promessa e verbo que Deus insuflou nele. Essa Bildniss é o próprio homem, sua essência eterna, a imagem de Deus da qual ele é (em seu ser empírico) uma cópia pálida e perturbada; ela é uma expressão ou uma teofania individual de Deus (na qual Deus está imediatamente presente e que, em certo sentido, está em Deus), que o homem tem a missão de vivificar e encarnar em si mesmo; que ele já é (em potência), mas que somente ele, por sua própria ação, livre e voluntária, pode encarnar (em ato) e que sem ele Deus não pode realizar.

Apesar de todas as dificuldades que se devem principalmente à impossibilidade de Boehme conciliar suas ideias pessoais com a tradição, bem como à ambiguidade que reina nas noções de seus “princípios” (e principalmente do terceiro princípio), sua concepção geral se delineia, no entanto, de forma bastante clara: o homem participa dos três mundos. Mais precisamente, ele pertence aos dois mundos eternos e se expressa no mundo do tempo. Ele pode decidir realizar-se (qualificar-se) na luz ou nas trevas, no bem ou no mal; é uma ação livre de sua parte, ação que transforma sua natureza e a torna cada vez mais conforme à função que ele mesmo se deu. Ora, Deus havia, por sua vez, conferido ao homem uma missão determinada. É a imagem dessa missão, sua própria imagem ideal, que o homem carrega em si; é ela que ele deve realizar e expressar. Ele é livre para fazê-lo ou não, para viver em harmonia e em luz ou em desarmonia e nas trevas; mas que ele se culpe a si mesmo. A graça (alimento celestial) o envolve. Deus o chama e se oferece a ele. Uma fonte infinita de energia e poder espiritual é colocada à sua disposição. O poder de “comer”, de receber e assimilar a graça lhe é dado. Cabe agora ao homem tomar partido, formar-se a si mesmo, “gerar-se” e “semear nesta vida o germe de seu ser eterno”, celestial ou infernal. A decisão lhe pertence.

A liberdade do homem é absoluta. Há, certamente, muitos fatores que impedem o exercício dessa liberdade: a hereditariedade, as paixões, o temperamento, as falsas doutrinas, a “carne”, para dizer tudo. Mas todos esses fatores, sendo finitos, não podem destruir a liberdade infinita do homem. De fato, a personalidade humana é infinita; como tal, ela é “mais” do que o universo sensível inteiro.

O homem, na concepção que Boehme faz dele, possui uma autonomia absoluta. No fundo, ele não precisa de nada. Os céus e a terra, o Paraíso e o Inferno, tudo está nele. A graça está no homem. Cristo está nele. Deus se deu a ele antes de seu nascimento. A eternidade se encarnou nele – virtualmente – mas essa própria virtualidade já não é uma realidade de poder?

O homem é superior a este mundo: ele deveria ser seu mestre e rei. Ora, se é assim, como o que vem deste mundo poderia formar obstáculos intransponíveis à salvação e à perfeição do homem ou ser condições indispensáveis para elas? Ele tem outro preceito a cumprir senão este: seja você mesmo ou, mais precisamente, torne-se você mesmo; torne-se efetivamente essa “assinatura” divina que você deve ser; realize seu próprio ser ideal, sua personalidade verdadeira, trazendo à harmonia o caos das forças da natureza que você carrega em si, e fazendo-as servir à encarnação do espírito que as domina e que, por e nelas, encontra seu poder de ação.

Esse personalismo, que, como vimos, está muito profundamente enraizado no pensamento de Boehme e que está ligado à sua doutrina do mal, qualidade positiva e, por isso mesmo, contingente, evitável e superável do ser, traz consigo uma espécie de relativismo personalista bastante curioso.

De fato, se, como Boehme ensina, cada pessoa humana é um reflexo e uma representação de Deus; se seu ser verdadeiro e sua essência consistem justamente no fato de ser uma teofania e uma encarnação individual; se cada uma delas cumpre seu papel eterno permanecendo, ou melhor, tornando-se ela mesma, não é claro que cada uma delas ocupa um lugar necessário na harmonia eterna da Sabedoria divina, e forma uma nota determinada ou, se preferir, uma letra determinada do grande poema divino? Mas, por outro lado, se cada uma delas cumpre sua função essencial tornando-se ela mesma, tornando-se cada vez mais pessoal, cada vez mais distinta das outras, se cada uma delas deve expressar o mundo e Deus de maneira diferente, não seremos levados a postular diferenças individuais irredutíveis entre as reexpressões, ou seja, entre os pensamentos, crenças, visões e percepções de cada uma delas? Cada uma delas fala sua própria língua; em cada uma delas o mundo e Deus se refletem de maneira diferente. Podemos, então, exigir dessas pessoas uma crença idêntica, uma religião comum? Não é preciso admitir, ao contrário, que essa identidade de crença é apenas um engodo e que, à medida que a alma se aprofunda em si mesma, à medida que sua religião se torna cada vez mais interior, espiritual e verdadeira, ela se tornará cada vez mais pessoal, cada vez mais individual, cada vez mais diferente da dos outros?

Boehme, de fato, aceita a conclusão: os “dons” de Deus são individualizados; a religião de cada personalidade lhe é própria. É apenas a letra (letra morta), a opinião (Meinung) que pode ser a mesma para todos; o espírito, por outro lado, difere em cada indivíduo regenerado. Mais precisamente, é o mesmo espírito divino, o mesmo Logos, o mesmo Jesus que se encarna e fala em cada uma das almas; mas a cada uma e em cada uma ele fala uma linguagem que lhe é própria. O tema é o mesmo; a tradução não é. O sentido é o mesmo – sua reflexão e projeção em cada uma das almas lhe é pessoal.