Koyré (1971) – Boehme – alma

(Koyre1971)

[…] Se nos recordarmos da imagem que Boehme emprega tão voluntariamente, a imagem da vida paradisíaca que brota, cresce e floresce no corpo material deste mundo (ausgrünet), podemos compreender como ele representava o nascimento do homem novo, dentro do antigo. Esse homem novo, tendo um corpo novo, se gerava no antigo, sendo seu “sumo” e seu extractum. A morte física não podia destruí-lo; não era isso suficiente para assegurar a unidade individual do homem após sua morte?

A concepção é engenhosa; sujeita a confusões, no entanto, que Boehme não deixa de cometer. Em seu desejo de salvaguardar a unidade do ser humano, ele nem sempre vê o quanto sua concepção difere da de Paracelso, com a qual é tão incompatível quanto com as de um Franck, um Schwenkfeld ou um Weigel.

Uma alma, na doutrina de Boehme, pelo menos quando se toma esse termo no sentido especial em que se aplica ao homem, não tem corpo próprio e não pode ter, pois no homem ela é apenas o primeiro princípio, o Centrum ardente e “sulfuroso” de sua natureza. Ela é a base ardente e devoradora de sua vida; ela tem seu Urkund, sua fonte, sua origem no primeiro princípio da natureza divina; ela é má, terrível, calcinante e irada como um ácido, como a água régia. Ela é um verdadeiro “demônio irado”, um “fogo sulfuroso”, “tão má quanto o pior dos demônios”.

Vê-se o quanto essa concepção da alma difere da de um Schwenkfeld ou de um Weigel, ou mesmo de um Paracelso. Para este, de fato, a alma, enquanto centro da vida orgânica, é o suporte do espírito ou uma força ou centro de forças produtoras, criadoras, fecundas e fecundantes. A vida só aparece nela em seu aspecto “positivo”; é uma seiva que incha na superabundância de seu ser. Para Boehme, a vida não é esse simples florescimento; ela é sobretudo o Contrarium hostil e devorador do ser que forma o corpo, mas também o dissolve e destrói. A alma é o Centrum dessa vida, o Centrum da natureza.

Ora, é justamente essa alma que forma a base da unidade ontológica do ser humano, e que é seu bem mais precioso. É que essa “alma” (e pouco importa que ela seja proveniente e gerada das três formas ou forças do primeiro princípio, ou “entre” o primeiro e o segundo, ou ainda que tenha sua origem no Principium do fogo) é, no homem, o que lhe confere uma natureza própria, uma base independente e eterna de seu ser; é ela que o torna ontologicamente semelhante a Deus. Essa “alma”, Centrum Naturae, que forma o corpo e gera o espírito — ou, mais exatamente, devora o corpo para gerar o espírito e, por meio do espírito, forma o corpo — confere ao homem o fundamento próprio e autônomo sobre o qual se eleva a vida do ser humano. Ela é a fonte do poder que lhe permite subsistir em si, e até certo ponto por si, e que permite ao seu espírito decidir, escolher e determinar-se. É também no homem a fonte do “contrário”, do Não, sem o qual nenhuma síntese verdadeira, nenhum ser verdadeiro é possível. É para o homem a garantia de sua eternidade (perenidade) natural, qualquer que seja o estado que, livremente, ele se der.