Koyré (1971) – Boehme – a obra do Homem-Deus

(Koyre1971)

A noção de imitação de Cristo — como as noções de renascimento, segundo nascimento, encarnação, nascimento de Deus ou de Cristo na alma, ou da alma em Deus — só adquire seu sentido profundo e pleno quando nos damos conta do papel e da natureza da obra realizada por Cristo. Para Boehme, essa obra consiste essencialmente em uma vitória sobre o mal e a morte. Não é a morte expiatória como tal, é a vitória sobre a morte (a morte à morte), é a ressurreição e o renascimento que são para ele a obra do Homem-Deus. Cristo não “pagou” por Adão; ele não deu “satisfação” à justiça divina; ele não “redimiu” a humanidade; ele não lhe trouxe a “justificação” e não se “substituiu” ao homem para responder por seus pecados. Ele fez outra coisa; muito mais, pensa Jacob Boehme. Ele primeiro, substituindo-se a Adão, cumpriu a tarefa deste último. Tendo se vencido (tendo vencido a morte e a Turba), tendo reconstituído em si mesmo a ordem das potências e dos princípios, ele devolveu a Deus, colocando-as por assim dizer à sua disposição, as forças de sua natureza. Tendo vencido a tentação e a morte, ele reabriu ao homem o caminho do Paraíso.

Ele também deu o exemplo: mostrou ao homem que, apesar de sua queda, a criatura podia reconquistar os dois, buscando, em sua imagem, em seu exemplo, em sua ação as forças que lhe faltavam para a vitória. Ele, aos homens e ao mundo, revelou Deus em sua essência verdadeira, a do amor, e, por isso mesmo, deu a Deus uma representação individual de si mesmo.

[…] Já dissemos o quanto, para Jacob Boehme, o conhecimento de Deus estava ligado ao do mundo: o renascimento, o nascimento espiritual era para ele algo que, permitindo ao homem reconquistar-se a si mesmo, também lhe permitia ver o mundo em sua realidade profunda, penetrar no mistério da natureza e ver Deus ali, não apenas seu reflexo ou símbolo, mas vê-lo a ele mesmo, na medida em que, evidentemente, ele ali se expressa. Boehme não se abstrai do mundo, como o místico clássico, para encontrar Deus no fundo de sua alma solitária, ou, se o faz, é para, tendo-o encontrado na alma, reencontrá-lo no mundo. Poder-se-ia dizer de Descartes que ele precisa tanto de Deus para fazer geometria quanto precisa da geometria para levá-lo a Deus. Poder-se-ia dizer de Boehme que ele precisa tanto da natureza para levá-lo a Deus quanto precisa de Deus para bem compreender a natureza.

[…]

Ora, é justamente essa separação das naturezas que Boehme não pode aceitar. Ele precisa salvaguardar a unidade ontológica do homem, porque é somente assim que ele acredita poder manter a identidade pessoal do homem antigo e do novo homem. É somente se a identidade pessoal se funda sobre uma identidade ontológica que a doutrina da salvação e do retorno a Deus adquire para ele todo o seu valor. É identicamente o mesmo homem que vive hoje na terra, é o viator, o pecador que deve reviver e obter a salvação; o homem inteiro, não apenas sua alma ou seu espírito. O homem deve reviver de Deus, não desaparecer para ser absorvido nele ou substituído por algo novo. Regenerado, salvo, o homem não deixa por isso (como acreditava Schwenkfeld) de ser uma criatura, e se (como ensina Boehme em concordância com Sébastien Franck) o corpo novo e espiritual do homem regenerado se forma nele durante esta vida, e nesta vida o faz participar do outro mundo e da eternidade, ele não é de forma alguma uma nova criatura. Caso contrário, pensa Boehme, não seria mais o mesmo homem; a identidade da pessoa humana seria perdida.

Essa afirmação constante do valor da personalidade humana, personalidade total, viva, “psicofisiológica”, implica necessariamente uma interpretação original dos temas místicos que acabamos de enumerar, e dá um sentido profundo ao voluntarismo de Jacob Boehme, que, cremos, não foi suficientemente destacado até agora. De fato, não basta dizer que é a própria vontade que, segundo Boehme, trava a luta contra o Selbheit egoísta: isso, como dissemos, está perfeitamente de acordo com a tradição; não basta dizer que é ativamente que o homem colabora para sua regeneração; que é ativamente que ele se apodera da graça divina que, por sua vez, lhe confere o poder de lutar e vencer o mal e o pecado e que a ação divina nunca se substitui à do homem. É preciso acrescentar que essa colaboração nunca cessa, pois, para Jacob Boehme, a vitória do bem sobre o mal, a salvação, a regeneração é um estado de tensão dinâmica. Mesmo definitivamente adquirida — como nos eleitos — ela não suprime a luta; é uma vitória eternamente conquistada sobre o adversário eternamente vencido. A vida eterna é uma luta eternamente vitoriosa contra a morte e o mal, eternamente superados.

Isso se aplica ao além, pois aqui na terra a luta nunca é definitivamente ganha. O homem, aqui na terra, não pode nem se perder sem esperança de salvação, nem se salvar sem medo de recaída. Ele nunca tem certeza da salvação que será sua. A certitudo salutis não tem lugar na piedade de Boehme. O homem não tem outra certeza senão a da bondade divina; a certeza de que todo homem bom, todo homem que luta com o mal e que, em si mesmo, combate a fonte do mal, a ipseidade e o egoísmo (o Selbheit e o Eigenwille), pode esperar, e pode ter confiança em Deus, em seu amor, em sua bondade, em sua misericórdia; pode ter certeza de que Deus o chama e o ajudará; que não lhe faltará graça; que não se recusará a ele. Mas é bem certo que esse combate, essa luta de todos os dias durará enquanto durar a vida. Talvez ela nem termine com esta vida: já vimos como é difícil para Boehme admitir que uma série de atos, nenhum dos quais decisivo em si mesmo, possa se tornar tal em seu conjunto. Nada é definitivo nesta vida e, se Boehme abandona a ideia do purgatório e protesta contra a da reencarnação, nem por isso deixa de admitir entre a morte e o juízo final um certo estado intermediário de inacabamento.

A ideia desse estado intermediário, embora muito difícil de conceber, podia parecer conciliar-se com sua fisiologia e sua antropologia. Boehme havia, como sabemos, retomado de Paracelso a concepção dos corpos múltiplos, corpos fluídicos e dinâmicos, que se encaixavam uns nos outros para constituir o corpo vivo do homem.