(Koyre1971)
É bem conhecida a importância que, nos meios protestantes, a questão da interpretação das Escrituras assumiu desde o início do movimento da Reforma. Admitia-se comumente nos meios espiritualistas que, para compreender o sentido da palavra divina, era necessário ser inspirado por Deus, que o mesmo Espírito que ditou aos profetas a revelação divina deveria inspirar aqueles que tentavam compreendê-la e penetrar seu sentido. Admitia-se também que, sendo a verdade una, a religião verdadeira só pode ser uma; que, participando o homem espiritual do mesmo Espírito que inspirou os profetas e evangelistas, não poderia haver divergências entre os inspirados. Não é o sentido real e verdadeiro da Escritura que a inspiração nos permite alcançar? Não é justamente para evitar as contradições inerentes às interpretações da “letra” que se deve fazer o esforço de sair inteiramente do domínio da opinião, renunciar à razão raciocinante e apelar ao mestre interior, à intuição mística?
Para Jacob Boehme, o problema se coloca de maneira diferente. Certamente, ele não deixa de invocar, como todos os seus predecessores, as divergências dos comentadores eruditos, a incapacidade dos teólogos oficiais de penetrar o sentido da Escritura e de fazer outra coisa senão expor opiniões humanas. É com um desprezo cordial que Jacob Boehme fala desses doutores, de suas opiniões (Meinung), que eles se esforçam para “provar” por “raciocínios” de sua razão humana e até demasiadamente humana. Como todos os espiritualistas, Boehme invoca a inspiração direta do Espírito, a certeza subjetiva, a certeza do conhecimento que lhe é dado e garantido pela imediação de sua experiência e de sua visão metafísica, pela consciência de receber o conhecimento com a inspiração, pelo sentimento muito claro de não ser ele mesmo a fonte última de suas doutrinas e intuições. E, no entanto, outros além dele elevam a pretensão de ter igualmente sofrido a transformação interior da regeneração, de ter recebido o dom do conhecimento e da intuição, de terem sido inspirados pelo Espírito. Boehme não põe em dúvida nem sua sinceridade, nem sua veracidade, nem mesmo o valor das revelações e inspirações que puderam receber. Se, às vezes, ele não se sente capaz de compreender o sentido de suas revelações, ele não conclui daí a falsidade das pretensões que eles elevam. Os dons divinos são múltiplos, e cada um vê Deus — se realmente o vê — sob um aspecto que lhe é próprio. Ninguém — exceto o Homem-Deus — pode vê-lo e expressá-lo em sua totalidade; e é justamente nisso que consiste a diferença entre o homem e o Homem-Deus.
Parece, portanto, que, mesmo no que diz respeito à interpretação dos livros sagrados, é preciso distinguir dois planos: 1° o sentido verdadeiro das palavras da Bíblia, das palavras inspiradas pelo menos, só pode ser compreendido por aqueles que o Espírito inspira; 2° esse sentido único deve necessariamente se traduzir em palavras diferentes em diferentes autores, e isso não só porque as palavras empregadas por cada um deles devem diferir, mas também em um sentido mais profundo: são, de fato, as próprias concepções dos diferentes autores sagrados, bem como daqueles que, hoje, os leem e compreendem, que devem ser individualmente distintas, pois é de seu próprio fundo que eles extraem as imagens e os conceitos nos quais traduzem suas intuições e revelações.