Hino e Atos

Manuel João Ramos — Ensaios de Mitologia Cristã
Hino da Pérola e Atos de Tomé
Prova geralmente aceite que o Hino é uma interpolação no texto dos Atos é o fato de o carácter fortemente antitético que marca a definição dos dois reinos, assim como o tom alegórico da descida do herói ao mundo das trevas e as elaborações místicas acerca da carta e da indumentária de luz, denunciarem laços diretos à literatura e teosofia gnósticas, ao contrário do resto da narrativa. Mesmo assim, porque o Hino tem naturalmente um carácter ilustrativo destinado a enquadrar a ação missionária de Tomé relatada nos Atos, é inevitável articulá-lo com aquela que parece ser sua função explícita na estrutura narrativa1: a de propor uma grelha de leitura dos últimos «atos» do apóstolo — a conversão e batismo de Vizan e seus companheiros, antes do martírio final no topo da montanha. Adicionalmente, importa lembrar que o Hino associa, alegoricamente, a distinção radical entre «vestido imundo» (o corpo) e «vestido de luz» (o espírito) ao tema da ascensão, e que esta problemática, de contornos sobretudo doutrinários e que será abordada mais adiante, enquadra as palavras finais de Tomé, nos Atos, ao «aparecer», depois do martírio e da ascensão, a Vizan e Sifur: «Eu não estou aqui. Porque é que estão aqui sentados e me olham? Eu ascendi para junto do meu Senhor e recebi o que procurava e esperava—» (§.169).

A ligação contextual do Hino aos Atos favorece, no entanto, um enquadramento presumível dos personagens ali representados num panteão teológico que é genericamente comum ao cristianismo e ao gnosticismo: o «Rei dos reis» é assimilável como uma figuração de Deus Pai2, assim como o irmão do herói, segundo em autoridade no reino oriental, representa o Cristo (à luz da indicação de germanidade entre Tomé e Jesus, nos Atos), e a carta-mensagem esotérica pode eventualmente conotar o Espírito Santo (na sua tripla manifestação zoomórfica, ígnea e verbal). Destas identificações decorrem outras, relativas ao próprio «reino oriental» (o Paraíso), à «serpente de respiração ruidosa» (figuração demoníaca), ao «Egito» e ao seu rei (o mundo humano, material). O esquema comparativo seguinte evidencia a proximidade narrativa dos dois textos:

||HINO DA PÉROLA|ATOS DE TOMÉ||O «Filho do rei», irmão do «herdeiro do reino»|Judas Tomé, «irmão» de Jesus Cristo||disfarçado de mercador «desce» ao ocidente (acompanhado por jovem belo)|disfarçado de escravo «sobe» a oriente (acompanhado por um mercador)||é enganado por egípcios e submete-se|engana rei(s) indiano(s) e é preso||é «acordado» por carta do pai|é «acordado» por um hino celestial||«adormece» a serpente e recupera a pérola|«adormece» a vigilância do rei e batiza Vizan||despe «vestido imundo», ascende ao oriente e recupera o «vestido de luz»|é morto num monte, ascende ao céu e recebe «o que procurava»||

Da confrontação direta entre os dois textos, três motivos comuns merecem ser referidos: em primeiro lugar, o complexo sociológico e familiar que carateriza o herói do Hino é equivalente ao dos personagens que Tomé confronta na Índia: trata-se, nos vários casos, de famílias de soberanos de reinos orientais; em segundo lugar, os dois textos constroem-se sobre o pretexto de uma missão-prova e de uma viagem organizada sobre o eixo Este/Oeste; e, finalmente, o duplo tema do disfarce do herói do Hino e do seu confronto com um soberano humano e com uma serpente sobrenatural encontra evidentemente amplos ecos no espaço narrativo central dos Atos. Tais paralelismos evocadores não devem, no entanto, fazer esquecer uma dupla inversão formal que afeta a combinação destes motivos comuns: por um lado, a inversão do sentido da viagem do herói — para oriente nos Atos, para ocidente no Hino —, e, por outro, a diferente valorização das noções de Magnificência / Humildade, e de Pureza / Impureza, nomeadamente na descrição das «indumentárias» e «disfarces» dos heróis que determinam o sucesso ou insucesso no confronto com os seus adversários.

Determinada por uma doutrina de carácter ascético de fundo cristológico, é manifesta, em diversas passagens dos Atos, uma valorização negativa das ideias de acumulação de bens (o palácio pretendido por Gundafor) e de ostentação pessoal (a indumentária de Vizan) que confluem na caraterização de uma soberania magnificente, representação centralizadora da vida social, e, inversamente, uma valorização positiva da noção de desprezo pela riqueza material que evidencia a humildade e o baixo estatuto assumido por Tomé — escravo, mendigo, estrangeiro — no polo oposto da escala social. A distorção que esta valorização provoca no quadro sociológico dos Atos encontra confirmação na codificação ético-religiosa: a pureza espiritual de Tomé advém da recusa e negação do que carateriza a soberania indiana (temporal).

Ao contrário, o Hino não só invoca uma associação, positivamente conotada, do herói a um soberano poderoso (o «Rei dos reis»), detentor de um magnificente palácio, e a uma indumentária ricamente bordada, como expressa significativamente o estado de fragilidade e permeabilidade à impureza a que o herói está sujeito, quando afastado de uns e de outra. Mas curiosamente, e apesar da menção explícita ao estado de impureza e de permeabilidade a que o herói está submetido no «Egito» (o uso do vestido imundo, a alimentação envenenada e a submissão ao rei egípcio), é imprescindível notar que não é como ser marginal mas como rico mercador que o herói se disfarça. Esta referência serve para sublinhar que entre um texto e outro não existe uma simetria completa das combinações apresentadas: a noção de Pureza surge, nos Atos, associada à de Humildade, assim como, no Hino, surge associada à de magnificência; mas tal não corresponde a caraterizar ali, explicitamente pelo menos, Gundafor, Mazdaï, ou Vizan como (mais) impuros, ou a fazer, aqui, do herói poluído um ser de baixo estatuto (senão o que lhe advém da sua condição de «estrangeiro»).

A inversão notada nas valorizações sociológicas e ético-religiosas é função daquela expressa no eixo geográfico-cosmográfico, e que se refere ao sentido da deslocação do herói (para oriente e para o mundo superior, ou para ocidente e para o mundo inferior). Para compreender esta formulação, é necessário prestar atenção ao contexto específico em que o Hino é inserido. O Ato IX refere que Tomé, tendo convertido a mulher de Karish, é acusado de feitiçaria e, na prisão, entoa o Hino da Pérola. A mensagem deverá ser entendida através da sobreposição dos destinos do «filho do rei» e de Tomé: como aquele, Tomé parece ter, neste ponto da narrativa, falhado a sua missão. A entoação do Hino tem a mesma função conjunto ra que a carta enviada pelo «Rei dos reis»: através da boca de Tomé exprime-se uma mensagem de origem celeste, que lhe vem lembrar, a ele, «gêmeo de Jesus», os perigos da submissão a um «príncipe deste mundo».

Da prova imposta ao «filho do Rei», no Hino (ao contrário dos Atos), está totalmente ausente a componente apostólica e ecumênica: não há isomorfismo entre a relação deste com o rei egípcio e a relação entre Tomé e os reis indianos. Mas deve ser retida a equivalência analógica dos dois projetos de missão: a busca esotérica da pérola é formalmente equivalente à missão apostólica de Tomé. A missão, referida no Hino como de libertação de uma «pérola» prisioneira da «serpente» para obter em recompensa o vestido de luz e a posição de co-herdeiro do reino oriental, é, na parte final dos Atos, explicitada: trata-se de converter a família real indiana de iniciar, através da nomeação de sacerdotes, um culto organizado e de reproduzir, na Índia, o sacrifício redentor de Cristo.
*FUNÇÃO DO HINO NOS ATOS

  1. O que não deve evidentemente significar a recusa de outros níveis de interpretação, mas apenas a sua secundarização no contexto particular desta análise.[]
  2. Figuração desenvolvida nos textos de carácter profético e apocalíptico (Salmos, XXIV, XIV e XLVII; Isaías, XXXIII, 20-21; Ezequiel, X, 2-6 e XI, 1 e 22; Daniel, VII, 9-10; Apocalipse, I, 13-16; IV, 2-6).[]