Hino Caído do Céu

Manuel João Ramos — Ensaios de Mitologia Cristã
Hino da Pérola — um hino caído do céu
Graças a uma leitura comparativa da narrativa dos Atos de Tomé e de um Hino integrado no corpo daquele texto é possível adivinhar uma elaboração mais sistematizada das relações lógicas de consubstancialidade e de transformação — num contexto literário onde são manipulados elementos narrativos que apresentam fortes analogias com a Carta do Preste João. Essas relações afetam o quadro simbólico no qual é pensada a problemática ontológica da relação do Eu com a sua «roupagem», e enquadram, através da oposição «Vestido imundo» / «Vestido de glória», o motivo anteriormente isolado do vestuário do rei-sacerdote.

Tomé, na prisão, acusado de enfeitiçar a mulher de Karish que se recusa a aceitá-lo na sua cama, canta um hino, o Hino da Pérola. Este hino contém uma chave fundamental para compreender em que termos se elaborou o quadro mental que permitiu imaginar a deslocação geográfica (e as transformações ética e sociológica correlativas) do Preste João, da índia para a Etiópia. Aí, é relatada uma viagem entre o Oriente e o Egito, cujo resumo é o seguinte (§.108-113):

O personagem principal (a narração é feita na primeira pessoa do singular) é filho de um rei oriental, que o envia ao Egito: trata-se de uma prova, para a qual ele deverá partir sem a «túnica brilhante» e sem a «toga, que foi medida e tecida para a (sua) estatura», prova essa que consta em procurar uma pérola que se encontra no fundo do mar, guardada por uma «serpente de respiração ruidosa»; se vencer a prova, ser-lhe-á devolvida a sua indumentária e, promete o pai, «com o teu irmão, que é o segundo a seguir a nós em autoridade, serás o herdeiro do nosso reino» (Klijn, 1962:121); Enquanto espera que a serpente adormeça, associa-se a um jovem conterrâneo «belo e amável»1, a quem aconselha a evitar os impuros e a disfarçar-se, como ele, com roupas egípcias; o narrador é ele próprio descoberto como estrangeiro e, ao comer comida egípcia, esquece-se que é «filho de reis», esquece a sua missão e mergulha num sono profundo; é-lhe então enviada uma carta, «do teu Pai, o rei dos reis, e da tua mãe, a senhora do Oriente, e do teu irmão, nosso segundo (em autoridade)» (Klijn, 1962:122), pedindo-lhe que acorde e que se lembre da pérola, da prova e da toga; a carta voa até ao herói, sob a forma de uma águia e, ao encontrá-lo, incendeia-se e torna-se fala, acordando-o; invocando o nome do seu pai, da sua mãe e do seu irmão, adormece a serpente e rouba a pérola; no percurso de regresso ao Oriente, despe o «vestido impuro e sujo» e é guiado pela carta que fala e emana luz; recebe da mão de dois mensageiros do rei (que são apenas um) a sua indumentária magnificamente decorada com ouro e pedras preciosas, bordada com a imagem do «rei dos reis», e que se torna um espelho onde o herói se revê, onde vê a sua exata imagem; o texto insiste na total identificação do personagem com o seu vestuário celeste: os dois são um ser único, saídos de um único princípio; o próprio vestuário é animado, falando e proclamando-se a propriedade do «filho do Rei»; um e outro aproximam-se, tocam-se e unem-se; totalmente envolvido por ele, o herói sobe até à porta do palácio do pai e oferece-lhe a pérola.

Em termos exegéticos, este hino de carácter místico e alegórico, assim como o conjunto dos Atos, tem sido interpretado à luz das teologias cristãs e (ditas) heréticas sírias. Diversos autores têm discutido tanto as ligações entre este texto e autores fundamentais da doutrina siríaca como Bardesan, Efraim, ou Taciano, como as influências cristãs helênicas e orientais, os paralelos com textos apostólicos e evangélicos, apócrifos ou não, e a atração que exerceu sobre ascéticos, gnósticos e maniqueus (Henri-Charles Puech, 1978, 11:118-121, 233-235). É discernível a presença de inúmeros elementos soteriológicos e gnósticos ao longo do texto, e uma insistência em aspectos de uma doutrina dualista em que o projeto de conversão e salvação é estruturado pelo confronto sistemático entre corruptibilidade e incorruptibilidade, entre escravização à matéria e ao corpo, e libertação e purificação espiritual através da abstinência e da temperança. Neste âmbito, e em termos equivalentes à concepção de Taciano, a definição ascética e dualista do conceito de «alma» como elemento intermediário entre a matéria (como indissoluvelmente ligada ao Mal, a uma criação falhada) e o Espírito divino, e portanto susceptível tanto de ser corrompida por aquela como de ser salva por este, assume um lugar central na lógica doutrinária dos Atos.

Assim, o Hino da Pérola tende a ser lido como uma alegoria sobre a descida da alma pré-existente e imortal ao mundo material, onde corre perigo de destruição (submissão ao «rei egípcio» e entorpecimento), sobre a libertação possibilitada pela ação divina (o «acordar») e pela busca da «faísca espiritual» presente e não dissolvida no Eu (como uma pérola no corpo da ostra), e a recompensa que constitui o regresso para junto da divindade (a devolução da indumentária e a unificação com o «rei dos reis»). Esta interpretação genérica não deve, no entanto, fazer esquecer um conjunto interessante de elementos de valor cosmológico e simbólico que confluem no papel essencial atribuído à relação por um lado, entre o herói e a sua «indumentária» celeste (a «imagem» a que Henri-Charles Puech se refere), que, fundidos, constituem o «verdadeiro eu», o Espiritual; e, por outro a sua «aparência carnal», representada pelo «vestuário imundo» do mundo inferior, do mundo físico e terreno (Henri-Charles Puech, 1978,11:117, 121).

Em primeiro lugar, não deve deixar de ser evocado o enquadramento espacial do Hino. Está aí bem sublinhada a oposição entre o mundo oriental, onde se localiza o reino e palácio do «rei dos reis», e o Egito. Esta variável geográfica, para ser plenamente compreendida, deve ser equacionada com uma codificação simultaneamente teológica e cosmográfica: é reconhecível aqui uma assimilação, comum tanto na tradição helênica como judaico-cristã, entre o plano horizontal e vertical, onde o mundo oriental, extremo-asiático, é conotado com o Paraíso terrestre, o qual é em si um ponto de passagem entre a esfera terrestre e a esfera celeste (Delumeau, 1992:37-57; Zumthor, 1993:232-233). Em contrapartida, o Egito, a ocidente, habitualmente caraterizado, na literatura enciclopédica e bíblica, pela aridez desértica e pela proliferação de répteis, surge aqui associado ao mundo inferior, das trevas, através da metáfora da serpente que se encontra no fundo do mar2.

A possibilidade de interpretação do Hino nestes termos é reforçada pela referência a um «rei dos egípcios» ao qual o herói, esquecido da sua missão, se submete. O paralelo com a oposição cristológica canônica entre «reino terreno» e «reino celeste» é evidente, assim como é notável a dependência de um quadro cosmográfico (e cartográfico) clássico que identifica o Oriente com o «alto». Mas uma inversão óbvia ocorre no Hino, tanto em relação à literatura evangélica em geral, como especificamente aos próprios Atos: se, nos evangelhos, a riqueza, a ostentação e o luxo são obstáculos ao acesso ao reino celeste, se nos Atos, quando Tomé confronta Vizan pela primeira vez, a diferença entre os dois é expressa pela aparência humilde e miserável do primeiro e pela riqueza e sumptuosidade da indumentária do segundo (§.139), aqui, contrastando com o vestuário egípcio, sujo e impuro, com o qual o herói se disfarça, a sua verdadeira indumentária, que ele deve abandonar ao sair do «reino do Oriente» e sem a qual não pode entrar no palácio do «Rei dos reis», é magnificamente bordada com ouro, prata e pedrarias. Esta inversão deverá ser explicada no âmbito de um confronto mais detalhado com o texto dos Atos.
*O HERÓI DO HINO DA PÉROLA


NOTAS
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  1. O tema do «jovem belo e amável» (um anjo?) que surge no Hino é corrente, tanto na literatura apócrifa (e, nomeadamente, nos Atos de Tomé, §. 152), como nos textos canônicos: cfr. Mateus, XXVIII, 2-3; Marcos, XVI, 5; Lucas, XXIV, 4; João, XX, 13. 

  2. Cfr. Isaías, XXVII, 1 e Salmos, LXXIV, 14, sobre o Leviatã.