Hino Adão e Eva

Mistério da Salvação — Cantado por Hinógrafos Bizantinos
Adão e Eva
Este hino foi composto para o domingo antes da quaresma, ocasião em que se recorda a queda de nossos primeiros pais e sua expulsão do Paraíso.

O conteúdo deste poema de Romanos corresponde bem ao caráter original da quaresma, na liturgia e espiritualidade oriental: nele se insiste , não sobre a esperança da Ressurreição da alma pelo batismo, mas sobre a necessidade de apagar, pela ascese, a queda que o pecado de Adão infligiu a toda a humanidade: sujeição do corpo e de seus instintos, purificação e expiação, desforra contra o demônio, tais são os temas que o Melódio desenvolve em duas series de estrofes, antes e depois da narração da queda. Observa-se também que lembram-se fatos do Antigo Testamento, notadamente para justificar o numero de quarenta dias, tradicional, já desde o século IV: de Moisés e Elias, a Escritura diz textualmente que jejuaram quarenta dias, um no monte Sinai, o outro em seu caminho para o monte Horeb. Estas evocações são úteis, alias, para introduzir a narração da tentação de Eva, bem feita, não sem fineza e habilidade retórica.

Prólogo
Entrega-te, ó minha alma, ao arrependimento, une-te a Cristo pelo pensamento. Clama, gemendo: “Concede-me o perdão de minhas ações abomináveis , para que eu receba de ti, que és o único bom, a absolvição e a vida eterna.”1

Pelas obras e pela , esperamos alcançar a beatitude, nós todos que observamos os ensinamentos do Senhor e Salvador. Por isso honramos e amamos o ato heroico de jejum, honrado também pelos anjos. Por terem-no observado, os profetas assemelharam-se aos coros angélicos, apesar de serem da terra; o próprio Cristo não se envergonhou de praticá-lo:jejuou voluntariamente, traçando assim para nós, a via da vida eterna.

2

Moisés e Elias, estas torres de fogo, eram grandes em suas obras e primeiros entre os profetas» bem o sabemos. Falavam livremente com Deus, tinham prazer em se aproximar dele para suplicar-lhe e entreter-se com ele face a face, o que é admirável e até inacreditável. No entanto, mesmo assim, cuidavam de recorrer ao jejum que os levava a Deus. O jejum, com as obras, encaminha para a vida eterna.

3

Pelo jejum, os demônios são rechaçados como por uma espada, porque não aguentam nem suportam suas alegrias. Gostam sim, do gozador e do ébrio, mas diante da figura do jejum não conseguem permanecer, fogem para bem longe, conforme nos ensina Cristo , nosso Deus, quando disse: “A raça dos demônios vence-se pelo jejum e pela ovação.” Por isso foi-nos ensinado que o jejum dá aos homens a vida eterna.

4

A beleza imaculada do jejum é a pureza, mãe da temperança: faz jorrar uma fonte de filosofia e dá a coroa; assegura-nos o paraíso,2 devolve aos que jejuam a casa paterna da qual Adão foi expulso, levando consigo a morte por ter ultrajado a dignidade do jejum. Pois desde que viu este último violado, Deus, Criador e Mestre do universo, irritou-se. Aos que o honram, porém, ele dá em troca a vida eterna.

5

É o próprio amigo dos homens que primeiro confiara aos cuidados do jejum, como a uma Mãe amo rosa, como a um mestre, o homem que criara e cuja vida entregou às suas mãos. Se o homem o tivesse observado, teria morado com os anjos. Mas, rejeitando-o, ficou sujeito às aflições e a morte, a aspereza dos espinhos e das sarças, a angústia duma vida dolorosa. Ora, se no paraíso o jejum revela -se proveitoso, quanto mais o é neste mundo para nos merecer a vida eterna!

6

Adão, o primeiro homem, podia comer o fruto de qualquer árvore: o Altíssimo, colocando-o no paraíso, lho permitira, diz a Escritura. Proibiu-lhe, porém, tocar numa só árvore. Eis as palavras amigas do Criador: “Goza de todos os bens que te fiz; serei feliz do prazer que neles terás. Se observares meu preceito, eu te conservarei teu prazer; é a este preço que minha graça te manterá inacessível à corrupção, pois receberás a vida eterna.”

7

Escuta bem minhas palavras, Adão , e presta toda atenção a este mandamento. Entre todas essas árvores, há uma da qual te ordeno te abster: não que sua natureza seja má, mas é a tua que ela perverteria, se me desobedeceres. Porque se a essência da madeira não é prejudicial, seria para ti causa de prejuízo tocar naquela, pois leva escondidos em si o afiador dos pensamentos e a faca de seu gosto. Se, pois, comeres dela, perderás a vida eterna.”

8

– “Eis minha ordem, ó primeiro criado: não to carás de modo algum no madeiro do qual te falo. Se nele tocares, serás imediatamente entregue à morte, como ladrão; não porque não podes dele colher, mas porque te tornarias um ser sem e sem valor. Eu te impus uma lei divina, leve e fácil, e por isso te dei em profusão as outras plantas, para delas todas gozares sem te tornares sujeito à morte, tu que tens e possuis , em imagem, a vida eterna.”

9

Adão e Eva respeitavam a lei divina que haviam recebido. Mas o diabo, astuto, que observava seus movimentos de cobiça, procurava armar-lhes uma cilada. E, enquanto os via se esconderem com prudência, não se atreveu a aproximar-se do homem. Mas, vendo, o velhaco, Eva de pé sozinha perto da árvore, serviu-se dela imediatamente, para colocar a pedra na qual deviam tropeçar os dois que tinham sido os primeiros a receber de graça a vida eterna.

10

O Maligno aproximou-se, pois, com astúcia , da mulher, como amigo e familiar e lhe fez uma pergunta cheia de malícia. Conversava com ela, fazendo-se de compadecido: “Com que pretexto Deus vos deu o paraíso, como se vos amasse, proibindo-vos , porém, de tomar de todas as plantas? Que generosidade é esta? Se estais morando no paraíso, por que sois privado do prazer que ele dá? Como, pois, podeis ter sem ele a vida eterna?”

11

Abalada por estas palavras, Eva respondeu lhe: “Tu te enganas, não sabes o que o Senhor ordenou. Deus entregou o paraíso inteiro como mesa, àqueles que criou; só há uma árvore da qual não podemos colher,3 porque seria um obstáculo a nossa vida. Esta proibição nos é útil a ambos pela capacidade que tem de nos inculcar a consciência , do bem e do mal. Nós já recebemos, como propriedade nossa, a vida eterna.”

12

Então o inimigo cobriu com sabor agradável , as palavras mortíferas . Eis o que, refletindo, o grande inimigo dizia-se a si mesmo: “Se não juntar a astúcia a meu desígnio, se condenar Deus em minhas propostas, Eva suspeitará logo que odeio Deus e então perderei todo crédito junto dela. Ora, nem conheço ainda seus sentimentos4; se conseguir perturbá-los, talvez ouvir-me-á. Vou, pois, usar de artifício para abordar os que receberam a vida eterna.”

13

Logo após estas reflexões, a serpente dirigiu a palavra a Eva: “Alegro-me convosco pela profusão de prazeres que recebestes. Louvo a veracidade de Deus, porque não vos mentiu revelando-vos quão grande é a virtude desta planta: ela de fato dá o conhecimento do bem e do mal. Só Deus sabe discernir todas as coisas, por isso ele vos proibiu de tomar desta árvore, que dá a vida eterna.”

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“Porventura não saberia eu que Deus fez boa,5 a criação inteira? Como, porem, Aquele que fez boas todas as coisas, teria aceito fazer crescer a morte justamente no meio do paraíso? Não, a árvore do conhecimento não é uma pedra de tropeço, e não morrereis se dela comerdes. Graças a ela, tornar-vos-eis como deuses, como o Criador, passando a discernir as características do bem e do mal. É por isso que ela é vistosa no meio do paraíso inteiro, por que tem a vida eterna.”

15

Vendo a beleza e o poder da árvore, Eva inflamava-se pelo desejo de prová-la. Perturbavam-na os seguintes pensamentos: “Aquele que me revelou tudo isto não é, por certo, inimigo de Deus! Que ódio poderia ter a serpente contra o Criador? Esta árvore já agrada bastante à vista; vou depressa tomar o alimento que diviniza e saborear aquilo a cuja vista arde-me o desejo; dele darei a meu esposo para que tenhamos a vida eterna.”

16

Acabas, infeliz Eva, de aceitar um presente mortal, do qual já comeste. Por que tanta pressa para perder teu marido contigo? Examina-te atentamente, vê se tu és realmente o que pretendias te transformar ao dele comer; vê se tu és um deus, como esperavas. Assegura-te disto, primeiro; e somente depois, mulher, comprometerás teu esposo a prová-lo também. Não faças de teu marido o coautor de vossa perdição. Por que esta pressa em crer que o fruto desta árvore te deu a vida eterna?

17

Quando, encantada pela árvore, Eva se perdeu pois não tirou dela nenhum proveito — correu a dar de seu fruto a Adão; agia como se lhe oferecesse um presente magnífico. Dizia-lhe: “Até agora, passávamos, meu companheiro, perto de um tesouro e um prazer maravilhoso nos inspirava medo. Agora sei, meu marido, sei por experiência, que mantínhamos um medo sem motivo. Pois comi dele e estou aqui perto de ti, bem viva e dele recolho a vida eterna”.

18

“Sim, pode-se confiar na palavra daquele que me revelou tudo, pois ei-la verificada. Comi e não morri, como Deus me havia predito; mas estou aqui diante de ti, bem viva; o mandamento de Deus era só fingimento. Se fosse totalmente verdadeiro, estarias me chorando, morta e deitada na morte. Toma, pois, meu marido, e regala-te. Recebe, conforme a natureza deste fruto, a dignidade divina, que nada pode macular; vais tornar-te deus como aquele que dá a vida eterna”.

19

A serpente, como eu já disse, não tinha ousado aproximar-se de Adão, temendo ser decepcionada , em seu ardente desejo. Mas apareceu uma outra serpente mais temível, mais serpente do que aquela. Aquele que a serpente não mordera, esta (mulher) matou. Bajulando-o injetou-lhe seu veneno; despedaçou o, despedaçando-se a si mesma também; o engodo de um fruto comido fez das vítimas da serpente, mortos que perderam a vida eterna.

20

O desafortunado Adão foi sitiado por esta artimanha; e com uma só ferida, causada por um fruto comido, feriu todo o gênero humano. Sua desobediência jogou-o por terra, sujeito a toda espécie de males. Não soube guardar a medida conveniente e útil do jejum, que consiste em evitar os excessos da intemperança. Os cristãos, porém, de todas as raças , nele se exercitam com ardor, concorrendo com os Anjos, na esperança de obter a vida eterna.

21

Grande é o jejum, ao qual Adão havia sido destinado primeiro: pois a alimentação de nosso pai, era feita só de vegetais; e mesmo assim não soube se moderar. Em nossos dias, os prazeres do estômago são de toda espécie: delicadeza dos peixes, aves , quadrúpedes, variedades dos legumes e cereais, requintes dos apreciadores e delícias da mesa que excitam nosso apetite glutão, mas nos privam da vida eterna.

22

Que, ao dizer isto, não encoraje muitos de vós, meus amigos, aos atos de gula; não quero tornar-vos mais glutões que o primeiro homem. O que quis cantar, cristãos, é nosso ardor na prática da nobre virtude da temperança. Observando o jejum nesta época, vós vos apressais a pagar todos os anos o dízimo a nosso Deus, como os Hebreus que traziam ao Senhor o dízimo de seus bens, figura do futuro jejum pelo qual conseguimos a vida eterna.

23

Destaquemos, meus amigos, o número do dízimo na quaresma: há sete semanas de quaresma, mas em cada semana cinco dias são escolhidos para a prática do jejum, de modo que há 35 dias em que jejuamos e temos a mais, um dia e uma noite, o sábado da Paixão do Senhor; o que faz um total de trinta e seis dias e meio, dízimo do ano, pelo qual adqui rimos a vida eterna.

24

O Salvador do mundo, nós vos adoramos, rendendo-vos um culto espiritual. Vós que amais os homens, que tendes piedade deles, tende piedade de todos os homens. Comendo ou jejuando, nós todos vos louvamos, a vós que salvais do erro a humanidade que criastes. Vós sois nosso Deus, ainda que vos tenhais feito homem voluntariamente, nascendo da Virgem Santíssima, a imaculada Theotokos. Por isso, vos imploramos: pela intercessão de vossa mãe, dai a vossos servos a vida eterna.


NOTAS




  1. Prólogo: Este gênero de prólogo, no qual o poeta fala com sua alma é particular aos hinos penitenciais. 

  2. Estrofe 4 : “Pureza, mãe da temperança. “Filosofia.” O valor do jejum lhe advém do fato de ser ele a manifestação de um desejo de pureza, de integridade, que leva o homem a dominar seus apetites. Para Santo Tomás, o jejum é o ato próprio da abstinência, que é uma parte subjetiva da temperança. A ultima esta relacionada , com a “filosofia” na estrofe 1 do hino sobre a “tentação de José”: Nos dois casos, trata-se menos de um conhecimento teórico do que da prática da sabedoria cristã. Sabe-se que “filosofia” desde o século V, designa especialmente a vida monástica. 

  3. Estrofe 11: Colher. Literalmente “da qual nos é proibido comungar”. Idem na estrofe 10. Descrevendo a queda, o poeta pensa sempre nos dias em que a condição humana será restaurada pela eucaristia, a paixão e a ressurreição de Cristo. 

  4. Estrofe 12: “Seus sentimentos”: o demônio quer falsear a ideia que Eva poderia ter sobre ele , fazendo-se passar por amigo de Deus; não sabe , de fato, o que ela pensa dele e até que ponto foi advertida de desconfiar. 

  5. Estrofe 14: Boa… Alusão a Gen 1,31 onde se vê Deus olhar com satisfação a obra dos seis dias.