Gregorio de Nazianzo Natureza Humana

GREGÓRIO DE NAZIANZO — POEMA SOBRE A NATUREZA HUMANA (P.G., 37, 755-766)

Ontem, abatido pela tristeza, sozinho e longe de todos, assentei-me à sombra de um bosque, meditando dentro de meu coração. Gesto desse remédio nos sofrimentos, o de me entreter silenciosamente comigo mesmo. O murmúrio da brisa, junto ao chilrear dos pássaros e ao sussurro das ramagens, trazia prazer ao coração aflito. As cigarras, no alto das árvores, cantando sonoramente ao sol, acrescentavam um ruído que acabava de encher o bosque. Perto ainda, um córrego de água pura vinha banhar-me os pés e deslizava da mata como orvalhe refrescante. Eu, porém, absorvido na dor, não cuidava de nada disso, pois o espírito em tais condições se recusa a ir ao encontro de qualquer prazer. Interiormente agitado, entregava-me a uma luta onde eram minhas palavras que se debatiam. Quem fui? quem sou? quem serei? Não sei responder claramente, como não o sabem tampouco os mais sábios que eu. Envolto por uma nuvem, ando errante sem nada possuir, mesmo em sonhos, de tudo aquilo que desejo. Sim, somos peregrinos na terra e sobre todos nós se ergue a nuvem azul da carne. Mais sábio do que eu é quem melhor sabe expulsar a mentira loquaz de seu coração.

Eu sou. Explique-se-me o que é isso. Uma parte de mim já se foi, sou outro neste instante, e outro serei ainda se continuo a existir. Nada é estável. Assemelho-me ao curso de um rio turbulento que sempre avança sem nada ter fixo. Dir-me-ás o que sou em tudo isso? Ensina-me ao menos o que sou para ti. Permaneço aqui um memento, mas cuida que eu não fuja de ti. . . Não atravessarás de novo o rio do mesmo modo como o atravessaste, não reverás o mortal que já viste uma vez. Eu existi inicialmente na carne de meu pai, depois minha mãe me acolheu e eis que provim de ambos. Fui em seguida uma carne confusa, massa informe, antes que homem, sem palavras nem espírito, tendo na mãe meu túmulo. Sim, nós estamos duas vezes no túmulo, pois nossa vida se termina na corrupção. Esta vida que percorro, vejo que se despende em anos que me trazem o funesto envelhecimento. E se, partindo da terra, sou recebido por uma vida sem fim, come se diz, vê se a vida não contém a morte, e se a morte não é para ti a vida, contrariamente ao que pensas.

Nada tenho sido. Por que sou sem cessar avassalado pelos males, como se não mudasse jamais? Pois só os males, entre os mortais, são imutáveis, inatos, inseparáveis, e não envelhecem. Apenas saído do seio de minha mãe, verti a primeira lágrima; e haveria de encontrar tantas e tão grandes calamidades! Derramava lágrimas antes de tocar a vida! Ouvimos falar de uma região, como outrora Creta, onde não havia animais ferozes, e de outra isenta da neve. Mas nunca se ouviu de um mortal que deixasse esta vida sem que tristes penas o atingissem. A doença, a pobreza, o parto, a morte, o ódio, os maus, as feras do mar e da terra, as dores: eis a vida! Conheci muitos males sem alegria, mas não conheci jamais a alegria completamente isenta de sofrimento, desde o fatídico fruto que degustei e o inimigo invejoso que me marcou com o signo da amargura.

Carne, eis o que devo dizer-te, a ti, tão difícil de se curar, inimiga suave, a quem a luta jamais abate, fera atroz que cruelmente acaricias, fogo que refresca — ó coisa espantosa! Mais espantoso porém seria se acabasses por te tomares minha amiga!

E tu, ó minha alma, ouvirás por tua vez a linguagem que te convém. Quem és? donde vens? qual o teu ser? quem te estabeleceu como sustentáculo de um morto? Quem te ligou aos tristes grilhões da vida, sempre inclinada para as coisas da terra? Como foste misturada ao grosseiro, tu que és sopro? à carne, tu que és espírito? ao pesado, tu que és leve? São qualidades que se opõem mutuamente e se combatem… Se vieste à vida, engendrada ao mesmo tempo que a carne, quanto então essa união tem sido perniciosa para mim! Seu imagem de Deus e me tornei filho da torpeza. Temo que o desejo tenha sido a causa do nascer de algo tão digno de honra. Um ser fugidio me gerou e sofreu a corrupção. Eis-me então homem, mas cessarei de sê-lo e me tornarei cinzas: são estas minhas últimas esperanças!

Ao contrário, se és celeste, quem és tu e donde vens? Aspiro sabê-lo, instrui-me! Se tens o sopro de Deus por origem e Deus mesmo por destino — como julgas — rejeita o vício e acreditarei em ti! Porque não convém que o puro seja maculado, mesmo levemente; as trevas não pertencem ao sol, o filho da luz não vem do espírito mau. Como és atormentada a tal ponto por Belial, tu que intimamente estás unida ao Espírito divino? Se com tal ajuda ainda te inclinas para a terra, então é grande a violência de tua maldade!

E se não vens de Deus, qual a tua natureza? Ah! temo ser presa de vão orgulho: Deus me plasmou, depois houve o Paraíso, o Éden, a glória, a esperança, o preceito, o dilúvio destruidor do mundo, a chuva de fogo, e a seguir a Lei, esse remédio escrito, e finalmente o Cristo, que uniu sua natureza à nossa para trazer socorro a meus sofrimentos através de seus divinos sofrimentos, para divinizar-me graças a sua condição humana; e apesar de tudo isso mantenho um espírito indômito, sou come o javali furioso que se mata precipitando-se sobre o ferro!

Que bem se acha na vida? A luz de Deus? Mas as trevas invejosas e odiosas dela me afastam! Não me beneficio dela. Os maus não me dominam sob todos os aspectos? Per que, apesar de todos os meus sofrimentos, não lhes sou ao menos igual? Estou abatido até a terra, até ao cabo de minhas forças; o temor divino me fez vergar; dia e noite me abatem preocupações; o orgulho derrubou-me ao seduzir-me traiçoeiramente, calcou-me aos pés. Cita-me tudo o que há de terrível: o negro Tártaro, o Flégeton (NT: “Phlegeton” = rio do inferno, na literatura antiga), os tormentos, os demônios que são os carrascos de nossas almas; tudo isso os maus têm como fábulas, só considerando o que está diante de si e é bem. O temor do castigo não corrige sua maldade. Mas preferiria ver os maus impunidos, mesmo no futuro, antes que me afligir agora por castigos devidos à sua maldade!

Mas por que então cantar assim as dores dos homens? A dor se estende sobre toda a nossa estirpe. . . Aliás, nem a terra é sem abalos, os ventos agitam o mar, as horas se sucedem em delírio, a noite põe fim ao dia, a tempestade obscurece o ar, o sol tira a beleza às estrelas, as nuvens tiram-nas ao sol, a lua se renova e o próprio céu não é senão parcialmente brilhante por seus astros. E tu, Lúcifer, tu estavas outrora entre os coros angélicos, e agora, invejoso, tombaste vergonhosamente dos céus.

Mas ó Trindade, reino venerável, sede-me propícia! Nem vós escapastes à língua dos efêmeros insensatos! O Pai, primeiro, depois o Filho em sua majestade, e enfim o Espírito do grande Deus foram objetos de injúrias.

Aonde, porém, infeliz aflição, tu me arrastas? Cala-te! Acaso, tudo não é pequeno em relação a Deus? Cala-te diante do Verbo!

Não, não foi em vão que Deus me criou! Mas eis que vou contra o que eu mesmo cantei: são as fraquezas de nosso espírito. . . Agora és trevas, um dia serás razão e compreenderás tudo, seja vendo a Deus, seja devorando-te pelo fogo.

Quando meu espírito me fez ouvir estes cantos, minha dor serenou. E assim tarde deixei o bosque sombrio e voltei à vida, ora alegrando-me com um pensamento, ora consumindo o coração no sofrimento, o espírito sempre em luta!