Gouillard Lembrança Deus

Jean Gouillard — PEQUENA FILOCALIA
Lembrança de Deus
A “lembrança de Deus” é uma das expressões mais simples e mais autênticas da contemplação, na tradição da Igreja Oriental (o mesmo se poderia dizer do sufismo). Os Padres do Deserto não têm outra ambição além de viver com ela. Para estes, a “lembrança de Deus” se confunde com a “oração ininterrupta” recomendada por são Paulo. Aliás, ela vai revestir-se de formas bem diversas. Muito simples, às vezes: o abade Lúcio, no deserto, não cessa “de dizer, enquanto molha e tece seus raminhos, fazendo corda: Tende piedade de mim, ó Deus, segundo vossa grande misericórdia…” Mas, como precisa igualmente de um pouco de sono e de alimento, faz esmola do dinheiro ganho: a, pessoa, reconhecida, ora em seu lugar. Essa é a sua maneira de resolver o mais difícil problema da oração ininterrupta (P.G., t. 65, c. 272b). Para Barsanúfio e muitos outros, a lembrança perpétua de Deus é simplesmente uma vida agradável a Deus. Haverá mesmo Acemetas para inaugurar um sistema de salmodia perpétua por revezamento, mas eles se colocam por demais à margem da tradição hesicasta, para que nos detenhamos neles. A lembrança de Deus complica-se, em Diádoco, com sua memória original simples, rompida depois do pecado. Gregório, o Sinaíta, retomará a mesma ideia, em seu acróstico. Com o tempo e sob a influência — principal, mas não exclusiva — dos Sinaítas, a lembrança de Deus vai tornar-se a oração ininterrupta de Jesus, de tal maneira misturada à alma, que continua em profundidade durante o sono e retoma consciência ao despertar.

A oração de Jesus absorveu a lembrança de Deus. Vai igualmente absorver a oração pura. Evágrio não inventou a oração pura, mas deu-lhe um timbre bem seu. Afrahat. místico persa, do século IV, conhece a oração pura, mas essa pureza , para ele, essencialmente de ordem moral; é exclusão do pecado. Para Evágrio, o intelectualista, é mais complicado. Sabe-se que, para ele, a oração é essencialmente contemplação, isto é, uma função do intelecto.

0 intelecto deve atravessar diversos degraus de purificação: purificar-se dos maus pensamentos ou mesmo dos legítimos, abandonar a multiplicidade que caracteriza a “salmodia” e as contemplações inferiores (dos seres criados e das disposições divinas relativas às criaturas), para atingir a simplicidade de um “intelecto-monge”, perfeitamente solitário, e ver Deus, por semelhança, em si mesmo. É o que ele chama atingir o “lugar de Deus”, de uma expressão tirada da Escritura e que resume o conjunto das disposições do intelecto reconduzido à sua natureza e função originais. O intelecto está, então, na oração pura, no sentido estrito do termo. Como já observamos, onde outros diriam “viver segundo Deus”, Evágrio diz: `viver segundo o intelecto, o espírito”.