José A. de Aldama — Maria na Patrística dos séculos I e II Contribuição e tradição Antonio Carneiro
Os recentes estudos de Peterson, Gilles Quispel, Jean Daniélou e R.M.Grant, que puseram em destaque a conexão histórica entre o judaísmo posterior e o gnosticismo cristão, projetaram uma nova luz sobre a explicação das origens deste último, que em formas variadíssimas invadiu a literatura cristã do século II.
Os primeiros sistemas gnósticos cristãos aparecem, com efeito, longamente emparentados com as especulações judias e as recordam de muitas maneiras em seus temas e em seus recursos.
Para São Irineu, o ponto de partida, não somente dos que hoje chamamos gnósticos sábios, anteriores à Valentino, mas sim também da gnose vulgar, tem que pô-los em Simão o Mago e seus seguidores, entre eles Menandro. Nem um nem outro, segundo a exposição que de seus respectivos sistemas faz São Irineu, encontramos nada relativo à Marialogia. Nem é de estranhar. A encarnação do elemento soteriológico divino na própria pessoa de Menandro ou de Simão deixava pouca margem para falar de Jesus em seus sistemas. Não são cristãos. Mas é curioso observar que Simão se transfigura para aparecer entre os homens como homem, sem sê-lo realmente, e para que se acreditasse sofrer a paixão sem padecê-la na realidade. Teremos aí a sugestão para o docetismo posterior de Satornil ?
Os sitemas gnósticos mais antigos, que conhecemos, pertencem à gnose vulgar e coincidem com as referências de São Irineu nos capítulos 29 e 30. Nos fins do século passado, K. Schmidt descobriu um papiro de Berlim, entre outros escritos gnósticos, um “Apócrifo de João” , que resultou ser a fonte principal desses capítulos. Schmidt não chegou a publicar o texto, o fez em 1955 W.Till. Mas, entretanto, os descobrimentos de Nag Hammadi, donde apareceram tres exemplares do “Apócrifo”, puseram em destaque até que ponto este se lia e se utilizava nos meios gnósticos do Egito. Tudo isso recomenda a boa informação de que dispunha Irineu.
Suas referências no capítulo 30 parecem aludir aos ofitas. Para eles, Jesus nasceu virginalmente por especial ação divina. Por isso é o mais sábio no Jordão o Cristo superior, som o que resultou constituído Jesus cristo. Perseguido por sua predicação e seus milagres, no momento da paixão, o Cristo superior abandona a Jesus, que é crucificado. Uma virtude enviada pelo Cristo superior o ressuscita em um corpo “psíquico e pneumático” , não em um corpo terreno (“mundiale”), que, como incapaz de salvação, fica abandonado no mundo. Neste sistema se mantem expressamente a maternidade virginal de Maria. Fruto dela parece ser o corpo terreno de Jesus. Isso nos obriga a não dar às palavras do Pseudo Tertuliano, (falando também dos ofitas), “Christum non in substantia carnis fuisse” , o sentido doceta que pudesse crer-se insinuado nelas. O ponto, de todos os modos, é obscuro, nem tem por que pretender que nos resulte claro com as fontes que possuímos; nem sequer que o fora em absoluto para os mesmos ofitas.
Como quer que seja, nestes sistemas se mantem a crença na maternidade virginal de Maria, como a manterão também os gnósticos posteriores.
Entre os gnósticos mais antigos nomeia São Irineu à Satornil, cujo ensino se situa em Antioquia pelos anos 105-110. Sua fonte principal está, sem dúvida, nas especulações cosmogônicas e antropológicas do judaísmo tardio, por intermédio do simonismo samaritano, segundo as referências de São Irineu. Por outro lado, sua Cristologia se inspira em outras fontes, se é que não prolonga sugestões simonianas. O Salvador não nasce de mulher, é incorpóreo e não tem figura sensível; somente na aparência se apresenta como homem; realmente não o é. São Irineu escreve:
“Salvatorem autem innatum demonstravit et incorpoalem et sine figura, putative autem visum hominem”.
Naturalmente, esta Cristologia doceta leva consigo a negação da verdadeira maternidade de Maria. também ela é mãe só na aparência. Será considerada mãe (talvez virginal) de Jesus; mas realmente não o é. Novamente se quebrou assim o equilíbrio do “kerygma”; mas agora foi sacrificando o outro extremo da verdade revelada.
Uma concepção semelhante São Irineu atribui à Basilides. Basilides representa o primeiro ensaio certo de gnose sábia que conhecemos. São Epifânio, talvez fundamentado na frase ambígua de São Irineu, o faz condiscípulo de Satornil em Antioquia. O que sim é certo é que sua presença em Alexandria por volta de 120 o colocou em contacto com o platonismo da época, interpretação do platonismo clássico cujo iniciador foi Antíoco de Ascalon. Seu influxo, unido ao da gnose vulgar alexandrina e ao da gnose pré-cristã, ia somar-se aos próprios conhecimentos cristãos para dar lugar ao curioso sistema , em que não poucos traços diferem do valentianismo radicalmente.
Segundo a referência de São Irineu, Basilides falava de uma missão feita pelo Pai, que envia o “Nous” primogênito ao mundo para libertar os que creem nele. Este aparece no mundo na pessoa de Jesus. Mas Jesus não é uma realidade sensível; é uma pura aparência. A frase de São Irineu “(apparuisse eum in terra hominem et virtude fecisse)” ficou bem esclarecida no texto de Epifânio, que acrescenta um dokesei. E, desde logo, o contexto confirma a exatidão dessa interpretação. A aparência se matem em toda a vida de Jesus, que é incorpóreo e impassível. No momento da paixão toma a forma de Simão Cirineu, e é nesta realidade o crucificado, não Jesus. Isto nem todos chegam a saber; mas compreendê-lo assim, é condição essencial de obter a liberdade e salvar-se. Estamos outra vez diante uma concepção doceta que supõe uma maternidade de Maria puramente aparente. Irão acreditar ser mãe de Jesus, sem sê-la na realidade. Com a descrição de São Irineu coincidem com as de São Epifânio (Ib.), o Pseudo Tertuliano, Filastrio e Teodoreto. Este docetismo de Basilides o supõe também Tertuliano.
No entanto, como é sabido, sobre Basilides temos outra exposição completamente diferente em “Elenchos” de Hipólito. Segundo esta interpretação do sistema basilidiano, o Salvador possui uma estrutura composta de cinco elementos diferentes: um corporal, recebido da “deformidade” (da matéria terrena e sensível); outro animal (psíquico), proveniente da “hebdomada” (região aérea); o terceiro, proporcionado pelo grande arconte (demiurgo) que rege a “ogdoada” (região etérea); o quarto espiritual (pneumático), vindo do “espírito limítrofe” (Espírito Santo), situado no firmamento entre o mundo e a região supra-mundana; finalmente o que pertence à esta região supra-mundana, donde habitam Deus e seu Filho. De todos estes elementos nos interessa aqui o primeiro, que se refere ao corpo de Jesus. esse corpo é terreno e sensível, como o prova o fato de que, ao ir-se dissolvendo a unidade de Jesus no momento de realizar sua obra soteriológica, esse elemento permanece na terra, reduzido à ela. Esse corpo o recebeu Jesus de Maria, por isso se lhe chama “o filho de Maria”. O docetismo está excluído. Mas foi virginal essa maternidade de Maria ? Não existe no sistema uma explicação particular sobre este ponto. A resposta afirmativa parece incluir-se na exegese que Basilides faz de Lc 1,35, na que, entretanto, a descida do Espírito Santo até o seio de Maria representa melhor a “filiação” mesma pela qual seu filho é verdadeiro Filho de Deus.