GNOSTICISMO — GNOSIS
VIDE: GNOSE; CONHECIMENTO
Francisco García Bazán:
O crente gnóstico é o que possui a gnose. E a gnose é um conhecimento. Mas este conhecimento escapa às análise normais racionalistas. O correlato deste conhecimento é o Si mesmo: a intimidade infinita ou espiritual da pessoa, que é o verdadeiro e simples. Se conhece ao Si mesmo como objeto de conhecimento, mas o Si mesmo só é conhecível por ele mesmo; o Si mesmo, portanto, se autoconhece na gnose, é sujeito e objeto de conhecimento, porque é uma mesma coisa o que conhece e o conhecido, conhecer e conhecer-se. Para esclarecermos, não é que o homem seja o Si mesmo, ou que o mais aparente do que se pode chamar o homem, a unidade psicofísica, seja o Si mesmo, mas que este, segundo tais sentidos, é algo totalmente diferente do homem. Tampouco é correta a declaração inversa, a saber, que o Si mesmo seja o homem e que, portanto, ao conhecer-se o Si mesmo seja o homem o que se conhece a si mesmo. Não, o Si mesmo se conhece a si e esta autognose é a gnose. O homem, o repetimos, como o enfocam as ciências e como o tende a idealizar a antropologia ingenua do crente comum, pode ser que experimente e que se conheça, até ignoramos que detalhes humanos, mas este conhecimento, embora o chamemos de seu eu, de sua intimidade ou de sua individualidade, é um conhecimento que tende a ver tudo o que se queira com as mais finas análises dos instrumentos sensoriais, psicológicos, racionais ou da imaginação reprodutora, mas que nada tem que ver com o conhecimento gnóstico. E porque a gnose tem este caráter peculiar que assinalamos, se diz que é revelação e não conhecimento, ou que é conhecimento revelado. Efetivamente, não existe possibilidade humana de aceitação, afetividade ou cognoscibilidade que possa alcançar a gnose. O auto-conhecimento de Si mesmo é extra e super-humano. É um conhecimento supra-consciente que depende de si, que nada tem que ver com o humano, que pertence a outra esfera de ser. O hiato que existe entre o Si mesmo e o homem é intransponível e por isso o pneuma se reconhece e este reconhecer-se é um ato autônomo para o qual a razão, o sentimento ou a vontade como faculdades psíquicas, resultam ineficazes. Por outro lado, tampouco é idêntico este conhecimento revelado à fé, embora esta se mova no âmbito espiritual; e será menos ainda quando a experiência da fé, fenômeno comum em nossos dias, tende a confundir-se com a crença e com a mesma linguagem religiosa que a gerou. Mas ambas experiências, embora diversas e hierarquicamente diferentes, podem aproximar-se, se se tem em conta que a fé é obra da graça e que esta possui uma autonomia própria que depende somente do sobrenatural. E se a revelação gnóstica se baseia na autognose, devemos afirmar também que sua forma de conhecimento há de ser imediata, direta ou intuitiva, alheia, portanto, à minguada forma racional dedutiva e muito mais à experiência e reunião de dados sensoriais. Neste mesmo plano gnoseológico, se a razão se mostra especialmente frutífera no âmbito judicativo e demonstrativo e se também colabora com os sentidos na esfera dos fatos e se nem a razão nem a experiência sensorial, podem dar conta da autognose, assim como o raciocínio é dedutivo e a experiência sensível é sensitiva, a intuição será espiritual e seu órgão correspondente será o nous, no sentido gnoseológico, mas se alcançamos mais sua perspectiva ontológica o chamaremos pneuma, espírito, o divino no homem, e em seu mais pleno sentido, Si mesmo, como a única verdadeira existência, ante cuja transparência o que chamamos de homem, obra de um não mitigado instinto anti-metafísico, é pura sombra e ilusão separadora. E esta é a completa segurança do gnóstico, o Si mesmo se descobriu e sua luz apartou sua ilusão, o que considerava humano. E claro que este conhecimento, autoconhecimento, ou reconhecimento, dada a vertente antropológica do Si mesmo, é salvador, pois conhecer-se é saber-se idêntico, experimentar a identificação entre o conhecido e o cognoscente e esta desvelação é reconhecimento da própria necessidade de manifestação do pneuma, rechaço de tudo o que oculta sua realidade e por isso salvação ou liberação, sinônimo de conhecimento, des-velação ou re-velação. Pelo contrário, manter-se oculto o Si mesmo nas sombras do humano significa condenar-se. Ocultação, desconhecimento ou ignorância tem o mesmo significado de condenação e fazem ao homem psíquico e carnal, não aberto e condenado, e por isso, com suas sombras.
Em síntese. A gnose própria do gnosticismo dado o explicado se resume nestes caracteres: autoconhecimento do Si mesmo como Plenitude e Absoluto, ou conhecimento pneumático revelado, intuitivo, salvador e esotérico.
*Irineu relatava do ensinamento de Marcion: “A redenção perfeita consiste no conhecimento mesmo da grandeza inefável. Porque existindo a deficiência e as paixões por causa da ignorância, toda a constituição que deriva da ignorância se dissolve pelo conhecimento, de modo que a gnose é a redenção do homem interior. E ela não é corporal, pois o corpo é corruptível, nem anímica, pois a psique deriva de uma deficiência e é a morada do espírito; por conseguinte, por necessidade, também a redenção é espiritual. A gnose, pois, redime ao homem interior, ao espiritual. (Adv. Haer. I,21,4).
A gnose se definiu assim como “conhecimento salvador” e só se fez desdobrar uma série de virtualidade descorrentes desta caracterização. Mas se compreende também que esta experiência, como o modo mais alto de sabedoria que se pode possuir, deverá encerrar em si quanto possa saber-se e dizer-se sobre a realidade e é isto que ficou desta maneira consignado nos mesmos documentos gnósticos:
*“Mas não somente é o batismo o que libera, mas também a gnose, quer dizer, quem eramos e quem somos; onde estamos e a onde fomos jogados; até onde aspiramos e donde somo resgatados; que é a geração e que é a regeneração” (Clemente de Alexandria, Excertos de Teodoto)
*“Aquele que chegue a conhecer deste modo sabe de onde veio e aonde vai. Sabe como o ébrio saiu da embriaguez, que se voltou para si mesmo e que recuperou o próprio dele” (Evangelho da Verdade)
Diz igualmente o Salvador a Tomé em outro dos manuscritos de Biblioteca de Nag Hammadi:
*“Posto que se disse que é meu irmão gêmeo e meu verdadeiro amigo, examinas e conheces ti mesmo quem és, como és e como deves ser… Sei que alcançastes o conhecimento, posto que me conhecestes, porque eu sou o conhecimento da Verdade… Alcançastes já o conhecimento e serás chamado ‘o que conhece’, pois o que não se conhece, nada conhece. Mas o que se conheceu chegou já ao conhecimento tocante à profundidade do Todo”. (Hino da Pérola”, conservado nos Atos de Tomé.
Henri-Charles Puech
A gnose é uma experiência ou se refere a uma eventual experiência interior, destinada a transformar-se em uma estado imperdível, pelo qual no curso de uma iluminação que é regeneração e divinização, o homem se compreende em sua verdade, se rememora e toma consciência de si, ao mesmo tempo de sua natureza e de sua origem autênticas; por ela se conhece ou reconhece em Deus e se mostra a si mesmo como emanado de Deus e estranho ao mundo, adquirindo desta maneira, com a possessão de seu “eu” e de dua condição verdadeiros, a explicação de seu destino e a certeza definitiva de sua salvação, descobrindo-se como salvado — por direito e desde sempre — … (“Phénoménologie de la Gnose, Annuaire du Collège de France, 1953-1954)