Emile Gillabert — Hino da Pérola
A riqueza do simbolismo deste escrito gnóstico compensa em muito seu estudo. A história é inteiramente centrada na significação da Pérola. Há identidade entre a Pérola e o princípio divino do Príncipe. E esta identidade é a chave que nos abre à compreensão verdadeira do poema. A aventura do Príncipe é aquela de todo homem, todavia com uma diferença que a maior parte dos homens permanecem prisioneiros de seu ego e não chegam a descobrir sua identidade verdadeira. O relato não toma todo seu sentido senão para aqueles que se desembaraçam pouco a pouco de seus velhos vestimentos para alcançar o Despertar. Como o Príncipe, conhecem as aleias do destino humano, como ele, estão sujeitos às condições da existência.
O Oriente é o símbolo da estadia celeste, o Reino do Pai, do qual Jesus diz que é dos “pequeninos”. É o “lugar da vida”, o qual é anterior às divisões; seu nome é também Plenitude. O Príncipe à princípio conheceu o paraíso dos pequeninos, aquele que está a montante da escravidão de nossas estruturas mentais. O homem prisioneiro de seu mental vive no transitório, o impermanente, o ilusório, enquanto sua natureza profunda é o Si, o Absoluto, o Pai…. O Príncipe, no curso de peregrinação terrestre , vai conhecer as servidões do mental, como o pequenino tem contato com os diversos condicionamentos de sua entourage. É a maravilha que é posta na pobreza (Evangelho de Tomé – Logion 29). Mas o estado de pobreza, que persiste até que o mental seja dissipado, e de certa maneira um estado maravilhoso, pois é a ocasião do “retorno”, ou mais exatamente, vai permitir a constatação que no fundo jamais partimos. Constatação maravilhosa que faz Jesus dizer: “Feliz aquele que já era antes de existir” (Evangelho de Tomé — Logion 19).
Os pais enviam o Príncipe com víveres e riquezas para a viagem: são os dons que temos na partida da vida e que trata-se de desenvolver conscientemente; eles vão permitir a estruturação do indivíduo graças ao jogo de compensações, as quais não podem se elaborar senão se o pequenino viveu em um meio de relativa segurança. Com efeito, o enfrentamento do mundo exterior não é realmente possível e fecundo senão se o clima foi no início confiante e segurador. Caso contrário a “viagem” não pode se fazer ou, se empreendida, estará semeada de obstáculos dentre os quais alguns intransponíveis. Pois, não esqueçamos, a aventura não é uma projeção linear espaço-temporal, uma propulsão em um lugar a uma data dada. Ela comporta um retorno que, em realidade, é tomada de consciência de nossa verdadeira identidade em relação à falsa identidade do ego que se apoia no mental. Os víveres e as riquezas dadas na partida permitirão descobrir a Pérola única. A maioria das pessoas vivem sob o prisão total do mental e não alcançam jamais o processo de retorno. Tudo se passa para eles como se a Pérola não existisse ou como se pudesse encontrá-la na afirmação maior do ego. Elas se identificam ao “dragão do sopro que queima”. Eis porque não é mais questão de revestir a roupa de luz e se torna o herdeiro do Reino. Não é a sorte reservada ao Príncipe do Hino da Pérola nem àqueles que chegam a se liberar das servidões do mental. Depois de provações, múltiplas e frequentemente terríveis, eles se lembram de sua origem e dela experimental uma nostalgia incurável. A partir deste momento, o caminho consiste em eliminar a ignorância que atrasa a visão justa. Em linguagem simbólica, significa para o jovem Príncipe, encontrar a Pérola Única que o dragão detém. A aventura está ligada ao afastamento que é ao mesmo tempo obscuridade, trevas, em seguida à lembrança da natureza luminosa original, a qual permite a tomada de consciência do lugar de onde viemos. A respeito dos gnósticos, é dito no Evangelho da Verdade: “era uma grande maravilha que fosse ao Pai sem o conhecer e que tivesse podido deles mesmos se evadir para fora, posto que não podiam compreender nem conhecer Aquele em quem eles estavam”.
A “saída” é simbolizada no relato pela descida ao Egito onde se encontram ao mesmo tempo o dragão e a Pérola. Além do mais, o mar e as águas são um símbolo, corrente entre os gnósticos, do mundo das trevas que obscurecem o Divino. No entanto, a origem divina do Príncipe, está escrita em seu coração para que, vindo o momento, no mais forte das trevas, ele ainda se recorde. No entanto, como para qualquer um, lhe será necessário o abandono, a solidão, as perdições, as torpezas. No início, como é inexperiente e a via perigosa, seus pais o fazem escoltar por guias seguros. É o tempo em que o jovem homem, para aprender a se tornar autônomo, tem necessidade do ensinamento de um mestra. Todavia, o aprendizado não se faz realmente senão na solidão, no meio de provações de todos os tipos. O Príncipe está só, estranho no meio de homens. Encontramos aqui um tema familiar aos gnósticos (v. Hans Jonas), aquele do Estrangeiro. Estando NO mundo o gnóstico não é DO mundo. O sentimento de ser estrangeiro ao mundo o mergulha na solidão e no sofrimento. Bem-aventurada solidão, no entanto, pois se o gnóstico perdesse sua qualidade de estrangeiro, isto significaria que teria se familiarizado com o mundo. Ora, Jesus disse: “Felizes sois, solitários (monachos), eleitos, posto que encontrareis o Reino. Como dele saístes a ele retornareis” (Evangelho de Tomé – Logion 49). Numerosos textos gnósticos atestam que nossa existência terrestre é um espaço-tempo de exílio, de esquecimento, de ignorância, de embriaguez e de sono. É esta é bem a condição que é aquela do Príncipe. No entanto encontra um jovem homem, solitário como ele e com quem pode fazer trocas. Novos gnósticos em um mundo preso ao extravio e à degradação, temos a chance, como o Príncipe de poder compartilhar com raros amigos o que constitui nossa razão de viver. No entanto, apesar deste encontro privilegiado, o Príncipe, em sua preocupação de não se fazer notar — Jesus adverte para sermos prudentes como as serpentes e puros como as pombas — se veste como todo mundo. Todavia, algo transparece da “unção divina” que é marcado e assim para ser mal visto por todos e excite o dragão contra ele. Constatamos que o fato de vir e de ser “estranho” suscite no homem mundano um sentimento misto de inveja, surpresa, medo e agressividade, segundo dosagens variadas. Para tentar suprimir esta espécie de mal-estar, o Príncipe aprende por duras penas que não possui a prudência da serpente. Se deixa conduzir pelos habitantes do lugar chegando a esquecer sua origem real e a Pérola, razão de sua estadia no país do Egito. Afunda-se em profundo sono, total letargia. Os momentos privilegiado são seguidos, principalmente no início, de períodos de obscuridade mais ou menos longos.
Toda a passagem do relato onde o Príncipe parece se deixar irremediavelmente levar para os bens deste mundo a ponto de de se tornar DO mundo estigmatiza as ações do mental. Este busca captar a confiança e nos tornar escravos de seu comportamento: “eu servi seu rei”, afirma o Príncipe. O símbolo da bebida e do alimento tem um duplo sentido.
Como escapar da besta que quer nos fazer prisioneiros? A liberação só é concebível se deixamos em nós falar a voz das origens. Ela é liberadora na única condição de escutarmos sua mensagem. Mas ela não é somente logos, é também contemplação “daquilo que o olho não viu” (Evangelho de Tomé – Logion 17), dito de outro modo: Visão de nossa Face Original. Assim o Príncipe não está mais sob o domínio do ego; ele se identifica com a Palavra e com a Visão.
Quando evoca os nomes de seu Pai e de sua Mãe, remonta à origem da vida — à união do Yin-Yang. É o Logos que fala por sua boca, ele se fazendo uno com ele, numa evocação que é suficiente para encantar e fazer adormecer o dragão. E a partir do momento que se ampara da Pérola, ele se faz uno com ela. deixa seu vestimento sórdido, reencontra sua veste de luz que deixou pequenino, e da qual tinha esquecido o esplendor.