Fénelon — Tratado da Existência de Deus
Excertos de “O Tema do Homem” de Julián Marías
A LIBERDADE DO HOMEM
Sou livre, e não posso duvidá-lo: tenho uma convicção íntima e inquebrantável de que posso querer e não querer, de que há em mim uma escolha, não só entre o querer e o não querer, como também entre diversas vontades sobre a multidão de objetos que se apresentam. Sinto, como diz a Escritura, que estou na mão de meu conselho. Isto basta para mostrar-me que minha alma não é corporal. Tudo o que é corpo ou corporal em nada se determina a si mesmo, e, pelo contrário, está determinado em tudo por leis que se chamam físicas, que são necessárias, invencíveis e contrárias ao que chamo liberdade. Infiro daí que minha alma é de uma natureza inteiramente diferente da de meu corpo. (…)
Ocorre algo diferente com essa modificação de minha alma que se chama querer e com as modificações dos corpos. Um corpo em nada se modifica a si mesmo; só é modificado pela potência de Deus: não se move, é movido; não atua em nada, só é atuado, se se permite falar desta maneira. Assim Deus é a única causa real e imediata de todas as diversas modificações dos corpos. Não ocorre o mesmo com os espíritos; minha vontade determina-se a si mesma. E determinar-se a um querer é modificar-se. Minha vontade modifica-se, pois, a si mesma. Deus pode inclinar minha alma, mas não lhe dá o querer do mesmo modo que dá o movimento aos corpos. (…)
Os objetos podem ser solicitados e desejados por todo o bem que têm de agradável. As razões de querer podem apresentar-se para mim com o que têm de mais vivo e mais gratificante. O ente primeiro pode também atrair-me com suas inspirações mais persuasivas. Porém, em última análise, nesta atração atual dos objetos, das razões e mesmo da inspiração de um ente superior, permaneço dono de minha vontade para querer e não querer. (…)
Reunamos agora estas duas verdades igualmente certas. Eu sou dependente de um primeiro ente em meu próprio querer, e no entanto, sou livre. Qual é, pois, esta liberdade dependente? Como se pode compreender um querer que é livre e que está dado por um ente primeiro? Eu sou livre em meu querer, como Deus no seu. Nisto principalmente sou sua imagem e assemelho-me a ele. Que grandeza, pois participa do infinito! É esta a marca da divindade mesma! É uma espécie de poder divino que tenho sobre meu querer; porém, não sou mais que uma simples imagem desse ente tão livre e tão poderoso.
A imagem da independência divina não é a realidade daquilo que representa; minha liberdade é só uma sombra da desse ente primeiro por quem existo e por quem obro. Por um lado, o poder que tenho de querer mal é menos um poder verdadeiro que uma fraqueza e uma fragilidade de meu querer: é um poder cair, degradar-me, diminuir meu grau de perfeição e de ser. Por outro lado, o poder que tenho de querer bem não é um poder absoluto, visto que não o tenho por mim mesmo. Como a liberdade não é outra coisa que esse poder, o poder de empréstimo só pode dar uma liberdade de empréstimo e dependente. Um ente tão imperfeito e tão de empréstimo só pode ser, pois, dependente. Como e hvre? Que profundo mistério! Sua liberdade, de que não posso duvidar, revela sua perfeição; sua dependência revela o nada de onde saiu.
(Traité de l’existence de Dieu, parte I, cap. IV, art. II, § VI.)