Fénelon — Tratado da Existência de Deus
Excertos de “O Tema do Homem” de Julián Marías
O CORPO UNIDO À ALMA
O corpo do homem, que parece a obra-prima da natureza, não é, no entanto, comparável a seu pensamento. (…)
Eis uma alternativa que nenhum filósofo pode evitar. Ou a matéria pode fazer-se pensante sem que se lhe acrescente nada, ou a matéria não poderia pensar, e o que em nós pensa é um ente distinto dela e que a ela está unido.
Se a matéria pode fazer-se pensante sem que se lhe acrescente nada, é preciso confessar ao menos que nem toda matéria é pensante, e que a mesma matéria que hoje pensa, não pensava há cinquenta anos; por exemplo, a matéria do corpo de um jovem não pensava dez anos antes de seu nascimento; será preciso dizer, pois, que a matéria pode adquirir o pensamento mediante certa ordenação e certo movimento de suas partes. (…) Quem deu todas essas modificações tão justas e tão precisas a uma matéria vil e informe, para formar com ela o corpo de uma criança e fazê-lo pouco a pouco racional?
Se, pelo contrário, se diz que a matéria não pode ser pensante sem acrescentar-lhe qualquer coisa, e que é preciso outro ente que a ela se una, eu pergunto quem será esse outro ente que pensa, enquanto a matéria à qual esta unido não faz mais que mover-se. São duas naturezas bem distintas. Uma, só conhecemos por figuras e movimentos locais; a outra, só conhecemos por percepções e raciocínios. Uma não nos dá a ideia da outra, e suas ideias nada têm de comum.
De onde vem que entes tão diversos estejam tão intimamente unidos no homem? De onde vem que os movimentos do corpo deem tão rápida e infalivelmente certos pensamentos à alma? De onde vem que os pensamentos da alma deem tão rápida e infalivelmente certos movimentos aos corpos? (…)
E é certo que essa dependência é recíproca. Nada mais absoluto que o domínio do espírito sobre o corpo. O espírito quer, e todos os membros do corpo se movem no mesmo instante, como se fossem arrastados pelas máquinas mais potentes. Por outro lado, nada mais evidente que o poder do corpo sobre o espírito. O corpo move-se, e no mesmo instante o espírito tem que pensar com prazer ou com dor em certos objetos. Que mão igualmente poderosa sobre essas duas naturezas tão diversas- lhes pôde impor este jugo e as ter cativas em uma sociedades tão exata e tão inviolável? (…)
Duas maravilhas igualmente incompreensíveis: uma, que meu cérebro seja uma espécie de livro onde há um número quase infinito de imagens e caracteres dispostos em uma ordem que não estabeleci e que o acaso não pôde ter feito. (…)
A segunda maravilha que encontro em meu cérebro é ver que meu espírito lê com tanta facilidade tudo o que quer nesse livro interior: lê caracteres que não conhece. Nunca vi as marcas impressas em meu cérebro; e a substância mesma de meu cérebro, que é como o papel do livro, me é totalmente desconhecida: todos esses caracteres inumeráveis se deslocam e depois recobram sua ordem para obedecer-me. Tenho como que um poder divino sobre uma obra que não conheço e que é incapaz de conhecimento: o que nada entende, entende meu pensamento e executa-o no mesmo instante. O pensamento do homem não tem domínio algum sobre os corpos; e percebo ao examinar toda a natureza. Só um corpo pode a minha simples vontade mover, como se fosse uma divindade; e move todas suas mais sutis molas sem as conhecer. Quem a uniu a esse corpo e lhe deu tanto domínio sobre ele?
(Traité de l’existence de Dieu, parte I, cap. IV, art. II, proemio e § I.)