Michel Evdokimov — Peregrinos Russos e Andarilhos Cósmicos
Tradução Ephraim Ferreira Alves
!O Peregrino Russo — a procura da oração pessoal e cósmica
Um dia, no XXIV Domingo depois da SS. Trindade, entra em uma igreja durante o ofício e ouve esta passagem da primeira Epístola aos Tessalonicenses: “Orai sem cessar!” (1Ts 5,17).
Esta palavra me penetrou profundamente no espírito e perguntei a mim mesmo como é que seria possível rezar (euche) sem cessar quando cada um tem que se ocupar com inúmeras tarefas para ganhar a vida. Procurei na Bíblia e ali, com meus olhos, li exatamente o que ouvira: “Vivei em oração e em súplicas. Rezai em todo o tempo no Espírito” (Ef 6,18), “que os homens orem em todo lugar, levantando as mãos santas” (1Tm 2,8). Tinha que refletir muito, não sabia o que decidir.
Esse encontro decisivo faz nascer uma vocação de homem à procura de Deus. Não terá sossego enquanto não achar o socorro de um mestre espiritual. Não se preocupa com mais nada, nem com abrigo nem com alimento, não terá descanso enquanto sua alma (psyche) abalada com essa palavra de fogo não se acalmar.
Um dia, finalmente, encontra-se no caminho com “um velhinho que tinha algo de um religioso”, um monge que vinha de um mosteiro. No mesmo instante soube detectar a autenticidade da vocação do homem, que o assediava com tantas perguntas sobre a possibilidade de realizar as palavras da Escritura: “Orai sem cessar” e esta: “Eu estava dormindo, mas meu coração velava” (Ct 5,2):
“Agradece a Deus, irmão bem-amado, pelo fato de te revelar uma atração invencível em ti pela oração interior perpétua. Reconhece nisto um apelo de Deus…”
Esse starets (ancião) identifica facilmente o apelo irresistível que atrai esse humilde camponês pelo caminho da oração perpétua. O discernimento (diakrisis) mediante um homem de experiência é algo capital, ninguém deve levianamente enveredar por um caminho de oração cuja ascese (askesis) pode acarretar distúrbios de ordem psicossomática. É preciso para isso uma estimulação que provenha do próprio Senhor, e a ela deve o homem responder pelo dom total de seu ser, de toda a vida. Como religioso experiente, o starets não se contenta em pregar por palavras a necessidade de rezar. Vai transmitir não uma especulação intelectual sobre os estados de oração, mas uma experiência existencial alimentada com sua própria oração.
Pode-se resumir a mensagem essencial em algumas idéias simples, que servirão de precioso viático ao andarilho em suas peregrinações.
A primeira ideia é a prioridade absoluta que se deve dar ao ato de oração, “fonte das obras e das virtudes”, enquanto muitos fiéis — e isto se verifica mais ainda no século XX — dão toda a prioridade à ação (praxis), pensando ingenuamente que a oração vai vir, bem ou mal. Mas esquecem esta palavra do Apóstolo Paulo: “Acima de tudo, recomendo que se façam preces, orações, súplicas e ações de graça” (cf. 1Tm 2,1). Muitas vezes o homem prefere fugir para a ação por não se suportar e sentir-se por dentro de si mesmo em condição insuportável:
O que acontece é que estamos longe de nós mesmos e nem desejamos estar perto de nós mesmos. Fugimos sempre para não precisarmos nos encontrar em face de nós mesmos; preferimos bagatelas à verdade e pensamos: Como eu gostaria de ter uma vida espiritual, de me ocupar com a oração, mas não tenho tempo. Os negócios e as preocupações me impedem de me entregar deveras à oração. Mas o que é mais importante e necessário — a vida eterna da alma santificada, ou esta vida passageira do corpo pelo qual tanto nos afligimos? E é assim que se chega ou à sabedoria ou à estupidez.
O discernimento psíquico do starets diagnostica a grave doença ontológica do homem decaído: o desdobramento. A oração atua no sentido de reunir, de juntar os pedaços da alma, opõe-se ao esfacelamento efetuado sutilmente pelas preocupações, pelos negócios ou, de modo ainda mais grosseiro, pelos divertimentos, no sentido pascaliano do termo.
A segunda ideia é a da necessidade de oração frequente. É o âmago do método da oração hesicasta. A ele o peregrino se vai apegar zelosamente, com tenacidade de asceta. O homem é chamado a instalar-se em um estado de oração permanente que, aos pouquinhos, se converte para ele em segunda natureza, e até em verdadeira natureza, à qual retorna com a graça (kharis) do Espírito Santo. Encontra-se então a resposta para a exortação do Apóstolo Paulo, lancinante no espírito do peregrino: “Orai sem cessar!” Na presença constante do nome de Jesus (Nome de Jesus), sob o resplendor das energias divinas, o homem interior pode renovar-se, dar lugar ao homem novo em via de regeneração. “Não sabemos pedir aquilo que convém” — adverte-nos S. Paulo (cf. Rm 8,26), e o starets comenta: “Somente a frequência foi deixada em nosso poder como o meio para atingir a pureza que é a mãe de todo o bem espiritual”. A oração incessante não pode substituir a graça divina, mas torna o homem disponível para recebê-la quando assim aprouver ao bom Deus. Centra-se esta oração na repetição do Nome de Jesus. Na Bíblia, como se sabe, o Nome de Deus é portador de Sua presença. Presença temível para os judeus, o Nome divino é pronunciado entre eles com temor (phobos) e tremor, no dia do Perdão, pelo Sumo Sacerdote. Presença divino-humana, posta ao alcance de todos por Deus Encarnado na humilde manjedoura de Belém e ressuscitado em glória. Em poucas palavras, o starets expõe o essencial do método:
A oração de Jesus interior e constante é a contínua e ininterrupta invocação do nome de Jesus pelos lábios, o coração (kardia) e a inteligência (nous), no sentimento de sua presença, em todo lugar e todo tempo, mesmo quando se está dormindo. Exprime-se por estas palavras: Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim! (Kyrie Eleison) Quem se habitua a esta invocação experimenta grande consolação e a necessidade de proferir continuamente esta oração. Ao cabo de algum tempo, não pode mais ficar sem ela e por si mesma ela flui dentro dessa pessoa.
Para fundamentar o que diz, o starets vai multiplicando citações tiradas da Filocalia, como o fará depois o peregrino, dando assim a esses Relatos o jeito de um pequeno florilégio de escritos filocálicos ao alcance de todos os fiéis. Pode-se ver na Filocalia um guia da vida espiritual, uma via de iniciação à comunhão com Deus, uma “chave que abre a porta para os mistérios escondidos na S. Escritura”. Deixando-se dirigir por ela, o peregrino compreende o sentido de palavras que até então eram enigmas para ele: O homem interior (eso anthropos) no fundo do coração (lPd 3,4), o Reino está dentro de nós (Lc 17,21), revestir-se do Cristo (Gl 3,27) e tantas outras passagens. O amor à beleza (kallos) — eis o sentido literal do grego philo-kalia — designa o impulso daqueles que procuram a Deus na iluminação interior, onde percebem o brilho divino em seu resplendor. Este impulso se integra na tradição helênica, ou mais precisamente platônica, onde o belo é indissociável do bem (agathon) e do verdadeiro (aletheia).
Os termos beleza, esplendor, magnificência, glória e majestade perpassam toda a Bíblia deixando um sulco de luz, desde a palavra do Salmista: “O Senhor se reveste de brilho e majestade” (SI 104,1), até o dia de Pentecostes em que judeus vindos de todas as partes do mundo ouviram os Apóstolos proclamando em sua língua “as maravilhas de Deus” (At 2,11). Essa irradiação da glória divina se reflete na criatura (“Coroaste o homem de glória e majestade”, SI 8,6) e em todo o mundo criado cujo “esplendor e majestade” (SI 111,3) enchem Davi de admiração fervorosa. Não é portanto para se admirar se, no Apocalipse, o homem cheio de concupiscência (epithymia) e fascinado pelo brilho efêmero deste mundo for privado da visão da beleza divina: … “Tudo o que é opulência e esplendor está perdido para ti” (Ap 18,14). A espiritualidade filocálica é profundamente evangélica, ou mais exatamente, joânica, na linha do Apóstolo amado de Jesus, estupefato pela luz que veio a este mundo. O homem filocálico aspira a entrar no amor de Deus por toda a criação, a estabelecer o coração no silêncio — hesychia — longe das especulações abstratas. Eleva-se-lhe na alma um concerto de louvores, e ele mesmo, o hesicasta, se faz uma chama ardente:
Quando (…) rezava no fundo do coração, tudo que me cercava me aparecia com beleza arrebatadora: as árvores, a relva, os pássaros, a terra, o ar, a luz, todas as criaturas pareciam me dizer que existem para o homem, são um testemunho do amor de Deus pelo homem; tudo orava, tudo cantava glória a Deus! E compreendia assim o que a Filocalia chama “a linguagem da criação” e via como é possível travar um diálogo com as criaturas de Deus.
Pode então ocorrer todo um novo relacionamento do homem com a natureza. Os românticos viviam instantes extáticos de comunhão ou de fusão com a natureza sobre a qual projetavam seus estados psíquicos, como um Chateaubriand ou Hugo; ou que pressentiam animada por forças sobrenaturais, como no panteísmo de Shelley, Wordsworth e Goethe; ou que lhes parecia ter estruturas análogas às do espírito humano, o que possibilitava a comunhão, como pensavam um Schelling ou Novalis. Tanto no ponto de partida como no de chegada está a consciência do poeta. Nos Relatos de um Peregrino Russo o ato de fé apreende, num ato de tipo “panenteísta”, semelhante ao de Makar Ivanovitch em O Adolescente de Dostoievski, a presença do Espírito criador, presente e atuante graças às suas energias divinas no seio da natureza, e se Ele se afastasse, esta cairia no caos e no nada. Aqui, tanto no ponto de partida como no de chegada está o Espírito de Pentecostes, cujas línguas de fogo oferecem uma linguagem comum com a da criação. Muitos homens espirituais souberam iniciar-se a esta linguagem, como um São Francisco de Assis em seu “Cântico das Criaturas” (vide François Chenique). O homem se desfaz de todo o seu eu, para se fazer louvor puro. No entanto a beleza da criatura pode ser conspurcada pela feiúra, pelos cataclismas, pela crueldade. São Paulo sublinha esta decadência trágica, acarretada pela queda do homem, quando escreve que “toda a criação até agora geme e sente dores de parto” (Rm 8,22).
Confortado pelos conselhos do starets, o peregrino se submete à grande ascese hesicasta, começando por recitar todos os dias 3.000 invocações ao Senhor Jesus Cristo, e aumentando progressivamente a dose à medida de suas capacidades espirituais e psíquicas, até atingir a marca de 6.000 e 12.000 invocações, para finalmente deixar de contar, pois a oração de Jesus entrara nele, associada à respiração e aos batimentos cardíacos.” Desaparecem na pessoa a dispersão da atenção e o saltitar de um estado emotivo para outro. À luz serena do Nome de Jesus o ser recompõe sua unidade, e na heróica empreitada da oração perpétua, recupera paradoxalmente a verdadeira liberdade.
Apesar da simplicidade da descrição, a facilidade para adquirir a técnica (praktike), esse “combate invisível” (agon) não se dá sem que apareçam violentas dores físicas, invasão de preguiça (akedia), uma profunda letargia, tentações (peirasmos) agudas, obstinadas defesas de um organismo ainda submetido à lei do pecado (hamartia). Mas logo aparecem os frutos da oração: o pensamento serena, os longos serviços monásticos passam num instante, e “a invocação do Nome de Jesus Cristo me alegrava ao longo de todo o caminho, e todo mundo me tratava com bondade. Parecia que todos estavam dispostos a me amar”.
Após a morte do starets, ele só tem como conselheiro a Filocalia, que vai consultar para verificar suas sensações, estudar o desenvolvimento da oração do coração: “Sem tal controle, receava cair na ilusão, tomar as ações da natureza pelas da graça e me encher de orgulho por essa rápida conquista da oração, como me explicara meu defunto starets”. E é um homem novo que se põe a caminho, com novos olhos para ver o seu ser interior e o mundo que o cerca, muito leve e alegre:
Eis como vou agora, dizendo sem cessar a oração de Jesus, que me é mais cara e mais doce que tudo no mundo. Por vezes faço mais de setenta verstas num dia e não sinto o caminho; sinto apenas que digo a oração. Quando me assalta um frio violento, recito a oração com mais atenção e num instante eis-me aquecido. Se a fome se torna muito forte, invoco mais vezes o nome de Jesus Cristo e já não me lembro que estou com fome. Se me sinto mal e minhas costas e minhas pernas começam a doer, concentro-me na oração e não sinto mais as dores. Quando alguém me ofende, penso apenas na benfazeja oração de Jesus. Num instante, a cólera ou o sofrimento desaparecem, e tudo esqueço. Meu espírito se tornou muito simples (…). Só tenho uma necessidade: recitar sem cessar a oração e, quando o faço, eis-me todo alegre!
Houve quem lançasse contra esse modo de conceber a oração e seus efeitos a objeção de automatismo da graça, como se a oração agisse por seu próprio poder. A objeção tem algum fundamento. Mas é preciso observar que o narrador expõe apenas um resumo do método e deixa em silêncio as longas e dolorosas etapas iniciais pelas quais teve que passar antes de adquirir essa leveza diáfana. Há uma passagem que mostra bem o papel essencial da graça:
A oração interior que acima de tudo ilumina minha ignorância, não fui eu mesmo que a adquiri; nasceu em meu coração pela misericórdia divina e graças ao que me ensinou o starets. Cada um pode seguir o mesmo roteiro; basta mergulhar mais silenciosamente em seu coração e invocar um pouco mais o nome de Jesus Cristo, logo se descobre a luz interior, tudo se torna claro e, nessa claridade, aparecem certos mistérios do Reino de Deus. E aqui já temos um grande mistério, quando o homem descobre essa capacidade de entrar dentro de si mesmo, conhecer-se deveras e chorar docemente por sua queda e por causa de sua vontade pervertida.
O conjunto desse texto é perfeitamente “ortodoxo”, mesmo que algumas expressões — “basta” mergulhar… — componham um resumo um tanto abrupto, e outras — “cada um pode seguir o mesmo roteiro” — evoquem uma mentalidade estranha ao espírito dessa forma de oração, que deve antes de mais nada ser uma resposta a um apelo pessoal.
E agora uma palavra sobre “a luz interior” (phos). Lembremos inicialmente que a Bíblia, como também a mística oriental, vê a luz relacionada com a glória de Deus: o episódio da sarça ardente, a nuvem que guia o povo eleito pelo deserto, o Monte Tabor. O grande teólogo da luz Gregório Palamas estabelece uma distinção entre “a essência divina”, inacessível ao homem (ninguém pode ver o rosto do Pai sem morrer), e “as energias divinas” (energeia) pelas quais Deus se faz inteiramente participável a suas criaturas. A “luz incriada” percebida por exemplo pelos apóstolos no Monte Tabor está relacionada com as energias divinas, ao mesmo título que as chamas de Pentecostes. Quando se diz: “Deus é luz” ou se fala da luz interior, a luz pode ser percebida sob aspectos diversos. Pode-se tratar, no plano da linguagem, de simples metáfora ou de um símbolo que remete a uma fonte luminosa cuja realidade se pressente mas não se pode perceber. Subindo a um nível superior, pode-se tratar de uma luz real, de origem sobrenatural, captada por santos, mas igualmente por um pecador. Seria o caso de certas visões cuja autenticidade a Igreja reconhece, como, por exemplo, a luz que cercava o cálice de São Sérgio quando ele celebrava a Santa Missa ou que irradiava do rosto transfigurado de São Serafim de Sarov diante de seu discípulo Motoviloff. Pode-se tratar igualmente de uma luz percebida pelos sentidos momentaneamente transfigurados, como no episódio do Monte Tabor. Nesta ordem de ideias, a luz desempenha importante papel na arte iconográfica, em que simboliza particularmente a presença do Espírito Santo, fonte única de uma luz sobrenatural e difusa que não deixa lugar para nenhuma sombra. (A sombra é sinal, real ou metafórico, do império das trevas). Para São Gregório Palamas, a luz era o fruto normal da oração e da invocação do Nome divino, significava a presença do portador desse Nome no coração do hesicasta, do qual expulsava as trevas interiores.