Evangelho de Tomé – Logion 35

Pla

Jesus disse: não é possível que alguém entre na casa do forte e a tome pela violência, a menos que lhe ate as mãos; então transtornará a casa. [Reino Dividido]

Puech

35. Jésus a dit : Il n’est pas possible que quelqu’un entre dans la maison du fort et la prenne [« la prenne » ou « le (= le fort) prenne »] par violence, à moins qu’il ne lui lie les mains : alors il bouleversera sa maison.

Suarez

1 Jésus a dit : 2 il n’est pas possible 3 que quelqu’un entre dans la maison du fort 4 et la prenne de force 5 à moins qu’il ne lui lie les mains : 6 alors il bouleversera sa maison.

Meyer

(1) Jesus said, “You cannot enter the house of the strong and take it by force without tying the person’s hands. (2) Then you can loot the person’s house.” [Cf. Matthew 12:29 (Q?); Mark 3:27; Luke 11:21–22 (Q?)]


Roberto Pla

Antes de tudo há que se saber a quem chama Jesus “o forte”. Nos evangelhos canônicos, na passagem correlata, os escribas e fariseus acusavam Jesus de expulsar os demônios por Belzebu, príncipe dos demônios, e Jesus argumentava em defesa própria que isso equivale a imaginar um reino dividido contra si mesmo, o de Belzebu que, em tal caso, não poderia subsistir. Além disso, a suposição de que as curas as faz Jesus possuído por um “espírito imundo”, significam uma blasfêmia contra o Espírito Santo.

A tradição cristã em geral parece ter pensado que quando Jesus fala de prender “o forte da casa”, se refere a Belzebu enquanto príncipe dos demônios, mas tal suposição é errada, sem dúvida. Belzebu, ou melhor, Baal Zebub, um de cujos significados é o ser “dono da casa”, é o nome que deram os cananeus a seu ídolo e resulta inadequado imaginar que Jesus era tão imaturo como aqueles escribas e fariseus que concediam vida operante demoníaca à estatua do deus inexistente retratado na mente do povo de Canaã.

Longe de tal opinião supersticiosa, assinala Jesus que para efetuar qualquer cura de ordem psíquica, quer dizer, para sanar a alma de um mal influxo imaterial, ou como o evangelho diz: de um “espírito imundo” que a domina, é necessário antes de tudo reduzir totalmente ao ”adversário”, sem recorrer para isto ao concurso de outro “espírito imundo”, mas ao Espírito de Deus, cuja ação de salvação se estende não somente a este mundo visível, mas também ao outro, invisível.

É ao Espírito de Deus a quem toca curar a alma dos adventícios e nocivos conteúdos mentais, posto que a alma é a casa do Espírito, uma de suas mansões, tal como se disse: “Não sabeis que sois o Santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” (1Cor 3,16). Quanto ao “forte”, é o conjunto daquelas paixões que invadem e em ocasiões dominam a alma com seu influxo de ambições terrenas até o ponto de converter-se, tal como se diz de Baal Zebub, em “dono da casa”. Frente a este terrível adversário o primeiro que há de se fazer é prender ao “forte” por meio do uso “violento”, enérgico, da virtude e da oração, e logo deixar que o Espírito de Deus recupere mansamente sua posse da Casa que é sua e transtorne ou dissolva todas as edificações feitas sobre a areia pelo “forte” eventual.

A evocação testamentária desta purificação ativa da casa por meio de uma ação “violenta” está feita em um texto de Mateus: “O Reino dos Céus sofre violência e os violentos o arrebatam” (Mt 11,12). Além do mais, a concreção dos termos de tal purificação ativa, a traz o evangelista quando menciona uma passagem dos profetas: “Minha Casa será chamada Casa de Oração; mas vós fazeis dela uma cova de bandoleiros” (Is 56,7; Jer 7,11; [Purificação do Templo]). Os quatro evangelistas canônicos se recordam desse texto confeccionado por eles com dois fragmentos conjuntados de Isaías e Jeremias, e o citam na ocasião de um momento evangélico memorável que se pode epigrafar como a Purificação do Templo. A versão mais extensa destas cenas é a que transmite o relato joanico.

A Purificação do Templo deve entender-se em seu sentido “oculto” a limpeza de todas as impurezas psíquicas aderidas ou manifestadas por adesão em e pelo corpo. Esta interpretação implica no reconhecimento de uma identidade figurada, corpo = templo, de bastante uso na linguagem testamentária. As passagens onde tal identidade aparece são muitas e validam plenamente esta interpretação “oculta”. A afirmação mais conclusiva a proporciona o evangelista João uma pouco mais acima na mesma perícope da purificação do templo: “Mas ele falava do Santuário de seu corpo” (Jo 2,21).

Ao denominá-lo “Santuário” não se referia Jesus unicamente a seu corpo que havia de ressuscitar como templo espiritual de onde emanam rios de água viva, pois o Apóstolo fala repetidas vezes desta identidade com referência explícita a todo corpo hominal, já que é no corpo de cada um de nós onde se faz mais específica a necessidade de purificar o Templo.
-* Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos? (1Co 6:19)1.

Sem dúvida, ao nomear tal identidade se referem, tanto Jesus como o Apóstolo, a um corporeidade psicossomática, pois a purificação se atém, como é lugar conhecido na doutrina de Cristo, não ao que entra na boca (material), mas ao que sai da boca (anímico), com o qual se refere às impurezas da alma (v. Mal de Dentro). Se pode afirmar, por outro lado, que o “corpo natural” ao qual se refere Paulo quando tenta explicar aos coríntios o modo de ressurreição, é tanto corpo de carne, como de psyche (nefes) (v. 1Co 15:39-44).

As cenas da Purificação do Templo as incorpora o evangelista João no período inaugural da Primeira Páscoa, do primeiro “passo” ascendente espiritual. São estes os lugares nos quais os sinóticos explicam os acontecimentos do batismo de Jesus no Jordão, e é nesse sentido batismal no qual se deve interpretar a Purificação do Templo. Esse batismo de imersão na água = psyche, o “interioriza” o relato joanico para devolver-lhe seu sentido pristino de metanoia, quer dizer, de “conversão” ao interior do templo próprio, a fim de escrutiná-lo atentamente e levar a cabo, ainda com uso dessa violência psíquica — tão mal chamada “santa ira” (v. orge) por quem a olha do ponto de vista “manifesto” — a limpeza purificadora que serve para prender ao adversário “forte” acomodado nos conteúdos psíquicos que não o pertencem.

O chicote que se diz ter usado Jesus para a Purificação do Templo ou limpeza desse templo interior, credita a violência tensa e tenaz que exige o Reino como obra prévia ao ato de ser arrebatado. É o preço da bem-aventurança, um cumprimento que somente se alcança quando se padece fome e sede de justiça até a extenuação (v. Bem-aventurados). Pelo que se expressa no relato é possível entender que os pensamentos que brotam e vivem “não presos”, livres de toda atenção da metanoia, tendem a interceptar a percepção da luz no Santuário; são como mercadores da alma. eles são, com efeito, os que “fazem da Casa do Pai, uma casa de mercado”, longe do comportamento inocente das ovelhas e da simplicidade das pombas.

Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede prudentes como as serpentes e inofensivos como as pombas. (Mt 10:16)

É certo que o viver cotidiano só pode ser interpretado pelo homem “terreno” como um trabalho incessante de mercadores e cambistas que se instalam no templo com fins de crescimento próprio. No entanto, para arrebatar o Reino é necessário que a Casa do Pai fique antes livre do “forte”, de todo “forte” arraigado no coração do homem. O que se diz no evangelho é que somente com violência interior, com energia, é possível consumar o grau de humildade e de esquecimento generoso de si mesmo que a perfeição exige. Mas só assim é como a purificação do “Santuário” de Deus vivo, que somos nós, pode chegar a cumprir-se o mistério de desnudez em espírito que anuncia João Batista: “É preciso que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3,30).

E que consenso tem o templo de Deus com os ídolos? Porque vós sois o templo do Deus vivente, como Deus disse: Neles habitarei, e entre eles andarei; e eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo. (2Co 6:16)

Sem dúvida, a expulsão de mercadores e cambistas aderidos ao Santuário próprio como espíritos impuros, vai acompanhada do crescimento simultâneo do Filho do Homem, o morador real e único do Templo. A diminuição prévia e necessária é a que se acha escrita no saltério, segundo o recorda o evangelista:

E os seus discípulos lembraram-se do que está escrito: O zelo da tua casa me devorará. (Jo 2:17)


  1. O Apóstolo parece recordar a declaração de Jesus: “O Espírito, mora convosco e em em vós está” (Jo 14,17).