Essênios

Mircea Eliade, “História das Crenças e das Ideias Religiosas”

Quando ia acesa a guerra, no começo do verão de 68, um contingente do exército de Vespasiano atacou e destruiu o “mosteiro” de Qumran, situado em pleno deserto, às margens do mar Morto. Os defensores, ao que parece, foram trucidados; todavia, à véspera do desastre, tiveram tempo de esconder um número considerável de manuscritos em grandes vasos de argila. O achado desses manuscritos, entre 1947 e 1951, veio renovar o nosso conhecimento sobre os movimentos apocalípticos judeus e as origens do cristianismo. Com efeito, os eruditos identificaram na comunidade monástica do mar Morto a misteriosa seita dos essênios, até então conhecida unicamente pelas magras informações de Flávio Josefo, Fílon e Plínio o Velho. Entre os manuscritos decifrados e editados até agora, encontram-se, ao lado dos comentários de certos livros do Antigo Testamento, alguns tratados originais. Destaquemos os mais importantes: o “Rolo da Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas”, o “Tratado de Disciplina”, os “Salmos de Agradecimento” e o “Comentário sobre Habacuque”.

Com o auxílio desses novos documentos, pode-se reconstituir, em suas linhas gerais, a história da seita. Os seus ancestrais eram os hassidim, de cujo fervor religioso, bem como do papel que tiveram na guerra dos Macabeus, o leitor deve estar lembrado. O fundador da comunidade de Qumran, denominado pelos seus discípulos o “Mestre de Justiça”, era um sacerdote zadoquita, pertencente, pois, à classe sacerdotal legítima e ultra-ortodoxa. Quando Simão (142-134) foi proclamado “príncipe e sumo sacerdote perpétuo” e o ofício do sumo sacerdócio transferido irrevogavelmente dos zadoquitas para os hasmoneus, o “Mestre de Justiça” deixou Jerusalém acompanhado de um grupo de fiéis e refugiou-se no deserto de Judá. O “Mau Sacerdote” execrado nos textos qumranianos seria, provavelmente, Simão; ele perseguira, no exílio, o “Mestre de Justiça” e teria até planejado atacar Qumran, quando foi assassinado pelo governador de Jericó (I Macabeus, 16: 11 s.). As circunstâncias da morte do “Mestre de Justiça” são desconhecidas. Os seus discípulos e fiéis veneravam-no como o mensageiro de Deus. Da mesma forma como Moisés possibilitara a Antiga Aliança, o “Mestre de Justiça” a havia renovado; ao fundar a comunidade escatológica de Qumran, ele antecipara a era messiânica.

Desde a publicação dos primeiros textos, os especialistas observaram analogias significativas entre as concepções e as práticas religiosas essênias e aquelas do cristianismo primitivo. Graças a esses novos documentos, conhecemos hoje o meio histórico e espiritual (o Sitz im Lében) de uma seita apocalíptica judaica. Os paralelos essênios esclarecem certos aspectos da pregação de Jesus e muitas expressões frequentemente empregadas pelos autores do Novo Testamento. Mas há também diferenças, e não menos importantes. A comunidade de Qumran era rigorosamente monástica; os primeiros cristãos viviam no mundo, constituíam uma comunidade missionária. As duas seitas eram igualmente apocalípticas e messiânicas: os essênios, tal como os cristãos, consideravam-se o povo da Nova Aliança. Esperavam, porém, um profeta escatológico (que, no Novo Testamento, já havia chegado na pessoa de João Batista) e dois Messias: o Messias-Sacerdote, que os santificaria, e o Messias-Real, que conduziria Israel na guerra contra os gentios, guerra que o Próprio Deus levaria a termo vitoriosamente. O “Rolo da Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas” constitui, de fato, o plano de batalha dessa conflagração escatológica. Uma mobilização de seis anos seria seguida de 29 anos de guerra. O exército dos Filhos da Luz será constituído de 28.000 combatentes de infantaria e de 6.000 cavaleiros, reforçados por um grande número de anjos. Os cristãos esperavam, por sua vez, a segunda vinda gloriosa de Cristo, como juiz e redentor do mundo; seguindo, no entanto, o ensinamento de Jesus, não compartilhavam a ideologia da Guerra Santa.